Já lá vão mais de setenta anos, andei por terras do meu amigo António. Quando me permitiu partilhar a sua “sala de aula”, pude testemunhar a relação de respeito e de autoridade, que ele mantinha com os seus alunos. Um respeito, que permitia garantir o direito à aprendizagem. Uma autoridade, que o dispensava de atitudes autoritárias.
A prática do António diferia da de outros professores.
Um desses professores me afiançou que, no primeiro dia de aulas de cada ano letivo, “dava toda a corda à turma”, esperava que a desordem se instalasse e que o líder da desordem se revelasse. Então, “parava a romaria e aplicava no mariola uma sova monumental, que era remédio santo para todo o ano”. Tal e qual!
Mas, também me foi concedido o privilégio de reconhecer a distância que vai da violência “disciplinadora” desse professor de antanho à ternura dos braços de uma Ana, que viveu por dentro o quotidiano de um bairro degradado.
Entre outros dramas, conheceu o de uma criança por todos considerada “violenta”, hóspede quase permanente de um “quarto escuro”, onde cumpria longas horas “de castigo”. Porém, nem o negro isolamento domava a juvenil fúria. Em sucessivas vagas, a soco, a pontapé, à dentada, forçava a fuga das companheiras, e abreviava o regresso ao “quarto escuro”.
Recém-chegada, a Ana depressa se apercebeu daquele círculo vicioso de violência, “crime e castigo”. Poucos dias decorridos, aproveitando um momento de distração da endiabrada rapariga, prendeu-a nos seus braços. A pequena esperneou, sem conseguir escapar ao amplexo. Resignada, julgou chegado mais um momento de recolher à punitiva escuridão. Tremeu quando a Ana a beijou na face. Já quase não opôs resistência. Sentiu o abraço como abraço.
Não demorou muito tempo, foi procurar mais sarilhos e voltou – qual pássaro sem ninho – ao aconchego dos braços e ao afago dos lábios da paciente Ana. Algumas idas e vindas depois, o íman do afeto prendeu-a definitivamente. Uma verdadeira pedagogia do abraço vencera a da punição.
A vida dos professores estava recheada de acontecimentos dignos de narrar e, como não há duas sem três, aqui deixo registo de outra peculiar experiência, protagonizada por um “professor primário” da mesma boa índole da Ana e do meu amigo António.
O dia começou num vaivém entre vinte e tal crianças a chorar e meia dúzia de ansiosas e renitentes mães coladas ao umbral da porta, ora espreitando a descendência pelos interstícios, ora penetrando para assoar o nariz do herdeiro ou dar-lhe um beijo de despedida. Era o primeiro dia de aulas.
Respeitosamente, o professor encaminhou as ansiosas progenitoras no sentido da saída. Ao cabo de uma longuíssima meia hora, logrou encostar a porta:
“Com licença, desculpe, faz favor, minha senhora, sim, sim, pode ficar descansada, claro, pois, é natural, coitaditos, não é? As gotas, pois, não me esquecerei, pois, dá-me licença, se fazem favor, sim, minha senhora, não me esquecerei, com certeza...”
Com mão firme e beijinhos nas crianças, conseguiu fazer descolar da porta os dedos da última mão da última mãe, deitou um olhar àquela que seria a sua “primeira classe”, e respirou tão profundamente quanto a ansiedade lho permitia.
Cuidou de acalmar os pequenitos que, a todo o momento, ameaçavam retomar o choro.
Depois da tempestade, parecia ter chegado o merecido sossego. Era assim, o dia-a-dia de um “professor primário”, feito de paciência, abraços, beijos, cuidados vários.