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Morada das Águias, 29 de maio de 2044

Durante esta semana, se concedeu espaço à prosa poética e denunciadora do Ademar. E nesta cartinha, sob a forma de um prefácio a um livrinho, que ele escreveu para um livro do amigo Rubem Alves:

“O presente livro é, a vários títulos, um livro excêntrico. Excêntrico, desde logo, pela natureza do objeto de que se ocupa: uma escola fora da norma do menor denominador comum, que os guardiões da norma, primeiro, tentaram em vão asfixiar ou domesticar e, depois, procuraram delicadamente entronizar (e profilaticamente circunscrever) como vestígio arqueológico e excrescência crepuscular de uma certa práxis romântica e marginal de educação...

Excêntrico, também, porque, entrecruzando os olhares para dentro e para fora, retira e infere a utopia da realidade e não o contrário, atrapalhando o cínico pragmatismo dos desconstrutores profissionais de utopias...

Excêntrico ainda porque projeta sobre uma escola "primária", a mais “inferior” e politicamente desqualificada das escolas ditas não-superiores, um olhar apaixonadamente “interior” e narrativo, afetivamente cúmplice e solidário – um olhar que é ele próprio um desafio de sedução e uma provocação a outros olhares, porventura menos amigáveis.

A Escola da Ponte nº1, em Vila das Aves (concelho de Santo Tirso), é o objeto das narrativas e dos depoimentos reunidos no presente livro. Quero dizer ao leitor que a descoberta da Escola da Ponte representou também para mim (para quem não representará?) uma extraordinária e fulgurante "experiência de iluminação". Estava ali, de facto, “a escola com que sempre sonhara, sem imaginar que pudesse existir”. 

O que mais fortemente começou por me impressionar na Escola da Ponte foi a doce e fraternal serenidade dos olhares, dos gestos e das palavras de todos, crianças e adultos. Ali, ninguém tem necessidade de engrossar ou elevar a voz e de se pôr em bicos de pés para se fazer ouvir ou reconhecer pelos demais – porque todos sabem que a sua voz conta e é para ser ouvida. 

E quem diz a voz, diz o mais. Como as crianças não são educadas para a competição, mas para a entreajuda (e o exemplo vem dos adultos, porque  a rotina de entreajuda está instituída na Escola a todos os níveis como se fosse a verdadeira matriz do seu projeto cultural) – as pulsões de inveja, ciúme ou rivalidade, e toda a agressividade comportamental que lhes anda associada, estão quase ausentes dos gestos quotidianos dos membros desta comunidade educativa . 

Por isso é que na Escola da Ponte não faz sentido falar de problemas de indisciplina, porque todos apoiam todos, todos acarinham todos, todos ajudam todos, todos são, afetivamente, cúmplices de todos, todos são, solidariamente, responsáveis por todos. E, não menos significativo, todos sabem o nome de todos, ou seja, todos procuram reconhecer e respeitar a identidade de todos…

Percebi mais tarde que a serenidade que espreita nos olhares, nos gestos e nas palavras das crianças não é mais do que o resultado esperado e (acrescentaria eu) inevitável do “segredo” da intervenção pedagógica dos profissionais de educação da Ponte. Um segredo feito, simplesmente, de duas palavras e das correspondentes atitudes – “meiguice” e “paciência”. 

Parece romântico e fora de moda num tempo em que nas escolas e na sociedade tantas vozes supostamente preocupadas com a agressividade e a indisciplina dos alunos se erguem a reclamar rigorosamente o contrário. Pode parecer romântico e fora de moda, mas a verdade é que a “meiguice” e a “paciência”, na Escola da Ponte, resultam de uma forma absolutamente espantosa.” 


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Itaipu, 23 de fevereiro de 2045

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