Quando a Ana recebeu a infausta notícia, não queria acreditar. Dias antes, manifestara o seu regozijo pela celebração de um protocolo com o agrupamento de escolas e com a autarquia. A comunidade de aprendizagem surgia pujante e com reconhecimento das “autoridades”.
O regozijo dava lugar ao desencanto e à preocupação. As “autoridades” alegavam “não terem percebido” (manifestação de analfabetismo funcional?) o conteúdo do documento que, voluntariamente, tinham assinado, e, portanto, declinavam responsabilidades.
Ao longo de décadas, eu aprendera a lidar com canalhas. Sosseguei a Ana. O projeto iria acontecer, nos termos do protocolo!
Vezes sem conta, meus companheiros de profissão suscitaram este diálogo:
“As escolas que você ajudou a criar não têm aula, nem turma… Estão dentro da lei?
É evidente que sim.
Então, as escolas que têm aula estão fora da lei?
Sim, estão.
Por que diz isso?
Porque, do modo como funcionam, negam o direito a educação a muitos alunos. E esse é um direito inscrito na Constituição e na Lei de Bases!”
Respondiam:
“Sim, eu sei que há leis. Lá isso há, mas…”
Mas… o quê? Por mais de cinquenta anos, eu ouvira esses “mas” e a expressão “a lei não permite”. Mas, a lei permitia. Bastaria requerer inovação normativa, para que a inovação educacional acontecesse. Bastaria criar um Grupo de Trabalho no ministério, que ajudasse os burocratas a entender que o seu consulado estaria prestes a acabar, e que as ciências da educação deixariam de ser ciências ocultas, ou literatura de ficção científica. Que, finalmente, a lei iria ser cumprida.
Embora soubesse das raízes de certos traços culturais, a resignação dos educadores me desgostava. Atitudes de silêncio e demissão eram causa direta de uma contraditória situação: a autonomia das escolas estava garantida por lei, mas estava ausente das práticas – naqueles ignominiosos tempos, imperava o medo de perder o emprego.
Em comunidade, educadores elaboravam projetos, que garantiam a concretização do direito à educação. Fizeram entrega de documentação e solicitaram o diálogo sobre o seu conteúdo. E, decorrido mais de um ano sobre o público compromisso assumido pelo ministério, o Grupo de Trabalho ainda não havia sido criado.
As escolas sobreviviam num “faz-de-conta que serem autônomas”. Mais grave ainda era o fato de as práticas serem em tudo o opostas ao que estava escrito nos projetos – hierarquicamente obedecendo a “superiores hierárquicos”, as escolas estavam fora da lei. Ao instituir um quadro normativo subordinado ao paradigma instrucionista, a administração educacional entrava em contradição com documentos de política educacional por si mesma aprovados – essa contradição talvez configurasse falsidade ideológica.
Acresce que, impondo práticas instrucionistas às escolas, a administração impedia que princípios constitucionais fossem cumpridos. Poderíamos inferir que incorria em outra ilegalidade: a do abandono intelectual de milhões de alunos. Esse abandono se refletia nos péssimos índices de desenvolvimento da educação, em evidências de ineficiência administrativa.
Se somarmos a esse rol de potenciais ilegalidades, situações de abuso de poder e episódios de assédio moral, poderíamos concluir que, nesse distante mês de setembro de 2024, o sistema de ensinagem sobrevivia imerso em corrupção moral e intelectual, a Administração recorria a todos os truques, para impedir que uma nova educação se manifestasse. Mas, uma nova educação não demoraria a chegar.
