Pular para o conteúdo principal

Ceilândia, 31 de outubro de 2044

Netos queridos,

Para compreenderdes vicissitudes por que a Educação passa neste ano de 2044, tereis de conhecer as do passado. Há uns vinte anos atrás, encontrei no youtube (recordais-vos desse velho site de compartilhamento de vídeos?) uma entrevista com o António Nóvoa. Nessa entrevista, assim se manifestava o amigo António: 

“Palestras? Seminários? Isso serve pouco!” 

Naquele tempo, ninguém duvidava da sabedoria do amigo António. Ninguém poderia pôr em dúvida a competência profissional e a autorizada palavra desse mestre. Ele tinha sido o representante de Portugal na Unesco e uma das vozes teóricas mais coerentes, consistentes, no campo da educação. E o que nos dizia o António nessa entrevista?

Afirmava que o modelo educacional centrado no professor, na sala de aula, na turma, deveria acabar. Que seria necessário estabelecer uma nova relação com o conhecimento e definir outro papel do professor. Este não deveria ser mais o professor individual, solitário, em sala de aula, mas integraria um coletivo, trabalhando em equipe. 

Dizia que a informação estava em todo o lugar: na biblioteca, na Natureza, nas pessoas, na Internet, mas de forma caótica, desorganizada, semeada de fake news… que seria necessário desenvolver senso crítico, autonomia moral e intelectual, ensinar a pesquisar, a aprender. 

O papel do professor já não deveria ser o de transmitir informação, mas o de ajudar a dar sentido ao conhecimento, para que os alunos dele se apropriassem.

“Não aquela coisa de… dar aula!” – exclamou o António, ao referir-se ao “panorama da formação no Brasil, muito problemático, tal e qual no mundo” (sic). Seria preciso colocar o foco na formação profissional dos professores:

“Há universidades que têm uma formação extraordinária… do ponto de vista teórico. Mas, não têm um espaço de formação de professores, onde se produza a profissão.”

Sábias palavras! A Universidade deveria estar ligada à profissão e às escolas. Os três ou quatro primeiros anos da vida de professor eram os mais importantes, definiam a sua profissionalidade. Por isso, a formação continuada deveria ter como locus principal a escola, na produção de novas práticas. E o Mestre Nóvoa acrescentou: 

“Não é preciso reinventar a roda! 

Temos de evoluir de uma lógica de disciplinas para uma lógica de problemas da Terra, das cidades, respeitando as dimensões estruturantes das disciplinas. 

Não adianta ir a cursos, seminários, acções de formação. Tudo isso é um negócio imenso, que existe no mundo, que existe no Brasil, também. É um negócio que serve de muito pouco para a formação dos professores. A gente ouve umas pessoas falar de umas coisas, mas pouco adianta. 

A formação de professores não é ir ouvir palestras. Isso de pouco serve.”

Sei que acreditais no que o vosso avô vos diz. Mas, se no reino do virtual ainda restar cópia da entrevista, podereis encontrá-la neste endereço:

https://www.youtube.com/watch?v=WqBPdjzYqXE&feature=player_embedded&fbclid=IwAR0Qj5MMlNNifPGBMmMVlCcZ2xqd9vEHXofZFptPuOHEG9AuFkTcn6L_adI

Talvez porque a entrevista não fosse conveniente a podres poderes, não “viralizou”. Não conviria que as famílias, a sociedade, os professores e as escolas se apercebecem da falência do sistema de ensinagem e da possibilidade de se criar um sistema de aprendizagem – uma nova construção social.

Isso acontecia, vinte anos atrás. Se, hoje, os vossos filhos aprendem o necessário para viver uma vida decente, o devem a anônimos educadores daquele tempo, educadores éticos, que souberam escutar o Mestre Nóvoa.


Postagens mais visitadas deste blog

Barcelos, 13 de setembro de 2025

No mês de abril do ano 2000, Rubem visitou uma escola, que viria a referir nas suas palestras, até ao fim da sua vida. A Escola da Ponte havia sido a primeira a consolidar a transição entre o paradigma da instrução – o do ensino centrado no professor – para o paradigma da aprendizagem.  Na esteira da Escola Nova, o aluno era o centro do ato de aprender. E o meu amigo surpreendeu-se com o elevado grau de autonomia dos alunos, comoveu-se com os prodigiosos gestos de solidariedade e manifestações de ternura, que ali presenciou.  Pela via da emoção, me trouxe para o Brasil e para ele vai a minha gratidão, nestas poucas linhas: Querido amigo, falando de tempo – essa humana invenção de que te libertaste –, reparo que já decorreram vinte e cinco anos sobre um remoto dia de abril, em que, pela primeira vez, partilhaste o cotidiano da Escola da Ponte e me convidaste a conhecer educadores do teu país.  Desde então, a minha peregrinação pelo Brasil das escolas não cessa, como não ce...