Pular para o conteúdo principal

Santa Cruz do Capibaribe, 27 de outubro de 2044

Há cerca de uns vinte anos, uma palavra se apropriou de considerável espaço nas redes sociais: a palavra “energúmeno”, usada em torpes ataques movidos por energúmenos contra o patrono da educação brasileira.

Energúmeno é um termo de vasto espectro semântico. Daí que, cumprindo o prometido em cartas anteriores, vos fale do uso e abuso dessa palavra, nesses conturbados tempos. 

Nesse tempo, a Lei de Diretrizes e Bases completava trinta e três anos, o item de desenvolvimento da educação básica não deslanchava e o índice de proficiência em língua portuguesa e matemática estacionava em miseráveis percentagens. 

O Brasil ocupava os últimos lugares do PISA (para que saibam, era uma avaliação internacional, que, supostamente, media o nível educacional de jovens de 15 anos). Dado que a culpa não morre solteira, os políticos enjeitavam responsabilidades, ignorando serem, também, responsáveis pelo fraco desempenho dos jovens. Isso mesmo: agiam na ignorância da sua ignorância. E ignorância é uma das acepções da palavra “energúmeno”. dicionário nos dizia que esse vocábulo também designava o insensato, aquele agia de modo inconsequente, pessoa irresponsável, de difícil entendimento. Sem consciência das maldades que arquitetava, o insensato criticava aquilo que era incapaz de compreender, ofendendo a memória de eminentes educadores.

No arcaico mundo de há vinte anos, vivíamos convulsões sociais e políticas, clivagens se agravavam. Urgia que secássemos as mágoas, nos escutássemos e nos uníssemos numa causa comum: a da Educação. Porém, muitos daqueles que detinham poder percorriam “velhos caminhos modernos” como lembrava Maffesoli. Seres humanos desumanizados, bonsais humanos agindo para impedir a regeneração do Sistema que os produziu. A gíria brasileira, sempre pródiga em sugerir sugestivas imagens, assim descrevia a sua desastrosa ação: continuavam “a agir como cegos no meio de um tiroteio”. 

No início desta década de quarenta, o racionalismo e o individualismo deram lugar à emoção e ao ato coletivo. E essas nocivas criaturas cederam o lugar a uma nova geração de políticos, gente emancipada de energumenescências endêmicas, ou sindrômicas. 

Se a língua portuguesa é rica em sinónimos, ela também pode ser, por vezes, traiçoeira. Nesses sombrios tempos, um candidato a prefeito dirigiu-se aos seus eleitores nos seguintes termos: 

“Com a minha fé e as fezes de vocês, vou ganhar a eleição”.

O político era ignorante das regras de formação do plural das palavras, mas escasso dano causava à nação.  Bem mais gravosos eram os atos dos bons faladores e perfeitos conhecedores da gramática, energúmenos que usavam da verve para caluniar e manipular. 

Apercebia-me de que muitos dos energúmenos não sabiam que o eram. Por isso, eram merecedores de compaixão. Nas minhas orações para eles rogava perdão – também eram criaturas de Deus e não sabiam por que faziam aquilo que faziam.

In illo tempore, eu acreditava que, além de serem criação divina, eles passariam à condição seres humanos, quando nascessem de novo, tomassem consciência e se arrependessem dos seus pecados – conforme “Gálatas, capítulo 3, versículo 26: sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus”

Foi o que aconteceu já durante a terceira década deste século, muito por força de mudanças operadas por uma nova geração. A Ana, filha da Sissa, jovem de quinze anos, que demonstrava plena consciência da obsolescência da escola da sala de aula, isto escreveu: 

“Saímos da escola, corpos sem almas, sabendo quase nada do essencial”.


Postagens mais visitadas deste blog

Barcelos, 13 de setembro de 2025

No mês de abril do ano 2000, Rubem visitou uma escola, que viria a referir nas suas palestras, até ao fim da sua vida. A Escola da Ponte havia sido a primeira a consolidar a transição entre o paradigma da instrução – o do ensino centrado no professor – para o paradigma da aprendizagem.  Na esteira da Escola Nova, o aluno era o centro do ato de aprender. E o meu amigo surpreendeu-se com o elevado grau de autonomia dos alunos, comoveu-se com os prodigiosos gestos de solidariedade e manifestações de ternura, que ali presenciou.  Pela via da emoção, me trouxe para o Brasil e para ele vai a minha gratidão, nestas poucas linhas: Querido amigo, falando de tempo – essa humana invenção de que te libertaste –, reparo que já decorreram vinte e cinco anos sobre um remoto dia de abril, em que, pela primeira vez, partilhaste o cotidiano da Escola da Ponte e me convidaste a conhecer educadores do teu país.  Desde então, a minha peregrinação pelo Brasil das escolas não cessa, como não ce...