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São José dos Campos, 24 de novembro de 2044

Há cerca de vinte anos, uma equipe de educadores lançou na Internet o convite para se “aprender em comunidade”. Era uma proposta de autoformação, que dava resposta efetiva a necessidades sociais e educacionais da contemporaneidade. O gesto de amor (mas, também, de coragem) de pouco mais de duas dezenas de educadores viria a contagiar milhares, como se tratasse da propagação de um “vírus benéfico”.

As práticas, que esse benigno “vírus” preconcebeu, restabeleciam a ligação entre família, sociedade e escola, algo que a escola de modelo prussiano e da Primeira Revolução Industrial havia desfeito. Conciliava aprendizagens presenciais com aprendizagens realizadas através do recurso a tecnologias digitais de informação e comunicação.

Em espaços de aprendizagem físicos e virtuais, os educadores não preparavam projetos para os alunos; construíam projetos a partir de necessidades concretas dos alunos e das suas comunidades. Não faziam inúteis planejamentos de aula; ensinavam os seus alunos a planejar-se, a saber gerir o seu tempo, os espaços, os instrumentos de recolha de informação. Não criavam dependência nos alunos; criavam condições de mediação antropogógica e de desenvolvimento de protagonismo juvenil.

Os professores não “davam aula”; construíam roteiros de estudo de tripla dimensão curricular: a da subjetividade, a da comunidade e a da consciência planetária. E os jovens aprendiam a ser autónomos-com-os-outros, assumindo-se como sujeitos de aprendizagem, em contextos de cidadania plena.

Nos primórdios do século XX, a par da denúncia de Ferrière, que dizia ser a escola uma invenção do diabo, Montessori, Steiner, Freinet, Dewey e muitos outros escolanovistas propuseram que se passasse do magistercentrismo à centração da atividade escolar no aluno.

Diversas correntes pedagógicas foram adotadas por instituições de iniciativa particular. Nessas escolas, se continuava “dando aula”, mas melhorada com técnicas concebidas há mais de cem anos. As escolas passaram a adotar a lousa digital, fez-se educação à distância, foram recriados sistemas de ensinagem. Surgiram absurdos como a “aula invertida” e “startups”, que engendravam empresas de ensinagem e mercantilizavam o direito à educação.

A “crise” (que era um “projeto”) era dominada pela indústria dos congressos, seminários, ações de deformação. O erário público era delapidado em contratos celebrados com PhD, teoricistas e “freirianos não-praticantes” – os “áulicos” de que Darcy nos falava.

Para os teoricistas, o vosso avô se havia transformado num incômodo, só porque questionava a incoerência entre o discurso e a prática. Reagiram, num misto de desconfiança e ressentimento, quando eu afirmava que inovação era incompatível com sala de aula. Nada argumentavam, não contestavam. Mas, se não o diziam em público, comentavam fofocando, praticando assassinato de caráter, como uma amiga leal escutou e me confidenciou:

“O Pacheco é um europeu que tem a mania de possuir um saber absoluto para resolver questões educacionais brasileiras”.

Eu já nem era um “europeu”, nem cria possuir um “saber absoluto”. Apenas desejava partilhar saberes e erguer práxis. As fofoqueiras e os fofoqueiros confirmavam o que Piaget dissera, impregnando o discurso de velhos jargões e glorificavam projetos que de inovação pouco ou nada tinham. Felizmente, havia uma maioria de educadores tentando dar coerência ao discurso e aproximar a falação da ação. Tal como eu, procuravam casar a teoria com a prática, praticar Darcy.

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