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Encantado, 26 de dezembro de 2044

Hoje, quero falar-vos de coragem.

Se o professor não ensina o que diz, se transmite aquilo que é, o que ensinaria o professor instrucionista? Deixai que vos conte uma estória.
O Gastão era professor e se dizia homem digno, íntegro. Um amigo do Gastão ganhou a eleição para a prefeitura e convidou-o para ser o chefe de divisão de educação, criada pelo novo prefeito. Porém, seria necessário conferir seriedade à escolha. Foi aberto concurso público, concurso universal. Supostamente, qualquer cidadão, qualquer professor poderiam concorrer. Supostamente, em pé de igualdade!
Falta referir que o critério básico para admissão a concurso foi ser titular de licenciatura em… Ciências da Religião. O Gastão foi o primeiro (aliás, o único) classificado no concurso. Acrescente-se que o Gastão era professor de… Educação Religiosa e Moral.
Naqueles tenebrosos tempos, artistas se manifestavam, comparando a situação do Brasil com o enredo de uma novela da década de oitenta: a 'Vale Tudo'. Segundo o António, a novela continuava atual. O folhetim televisivo era o retrato da corrupção, da falta de ética e da inversão de valores, que infetara a sociedade brasileira. A trama da novela era bem original e teve um final inusitado: os vilões não receberam punição.
Um professor-vigia de uma prova nacional foi instruído pelo “manual do aplicador” a colocar os alunos a uma “distância prudente” uns dos outros. Inteligente, como qualquer professor, apercebeu-se de que, sem nada dizer, o não-verbal falava mais alto do que o verbal e que ele agia como quem considerava estar na presença de seres potencialmente desonestos. Com tal procedimento, estaria a praticar o chamado “currículo oculto”, a transmitir valores negativos aos alunos: mentira, deslealdade, falsidade, “espertismo”.
Esse professor, individualmente, assumia responsabilidade pelos atos do seu coletivo, era sensível a manifestações de negacionismo e às fake news que provocavam a erosão da coragem.
Lá por finais do dezembro de um ano incomum, quando evoquei as sábias palavras de Freire – Educação é um ato de Amor, um ato de coragem – uma amiga me recordou palavras de Osho:
“A palavra CORAGEM vem da raiz latina COR que significa "coração". Ser corajoso significa viver com o coração. O caminho do coração ê o caminho da coragem. É viver na insegurança, é viver no amor e confiar, é enfrentar o desconhecido. A pessoa que está, realmente viva, enfrentará o desconhecido."
Nos idos de vinte, amor sem coragem era sentimento estéril. Por isso, sempre que me perguntavam como se poderia operar mudança numa escola, eu respondia:
“Procurai um professor que ainda não tenha morrido”.
Por dezembro, me chegaram notícias da Praia da Fortaleza. Diziam ser um presente de Natal.  Eram imagens das experiências vividas pelas crianças do bairro, acompanhadas de algumas palavras:
“Espero poder relembrar que a escola não é só responsabilidade de quem tem filhos, mas de quem pretende ter, de quem ainda não tem, mas que estudou na escola no passado”. 
A escola do bairro continuava sendo usada segundo interesses de políticos, para dividir e enfraquecer uma comunidade, que assistia calada, desde há muitos anos. Mas, em Ubatuba, a mãe de duas lindas gêmeas resistia. No Rio, a corajosa Ingrid resistia. No Arraial da Ajuda, a Carolina e a Ilana também resistiam. Em escolas onde ainda havia professores vivos, se resistia. E a Carla tudo resumia numa frase:
“Coragem é a decisão, é a escolha, é a convicção, é viver.”
A coragem e a responsabilidade social ressurgiriam nos 365 natais de 2025.

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