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Paradela, 23 de janeiro de 2045

Evoco a saga de um Agostinho brasiliense, que partiu de Brasília para Portugal, quando a ditadura destruiu o projeto da faculdade sonhada para Brasília. O Mestre apenas pode criar um Instituto de Letras na universidade que Darcy sonhara.

Agostinho da Silva passou grande parte da sua vida no exílio, por não caber no estreito espaço da "normalidade" imposta numa pátria mergulhada nos tempos sombrios de ditadura. No Brasil que o acolheu, ajudou a fundar universidades e escreveu muitos livros.

Naquela que foi a sua pátria de adopção, Mestre Agostinho, procurou "infundir vida nova" em universidades, em instituições que somente cumpriam rituais desprovidos de sentido. Numa das suas obras, falou-nos de um Francisco de Assis, que também não foi um ser "normal" para a sua época, pois semeava a palavra, mostrando a todos como era possível traduzir em atos os preceitos e como se podia infundir “vida nova” no que se fora transformando em seco ritual.

No meu livrinho “Aprender em Comunidade”, escrevi sobre um “núcleo de projeto” constituído por Darcy, Anísio e Agostinho (em verdade vos digo que esse extraordinário trio agia como “núcleo de projeto”, até mesmo com recortes de um “círculo de aprendizagem”):

“Assumindo as contradições da época em que viveste, defendias a aplicação do conhecimento científico na educação, mas consideravas ser a educação uma arte, algo mais complexo do que uma ciência”.

Recordo-me de, no mês de setembro de dois mil e vinte e a convite da Cátedra Agostinho da Silva, ter participado na celebração dos “Cinquenta e Cinco Anos do Instituto de Letras da Universidade de Brasília”, tendo oportunidade de retomar a evocação do Mestre Agostinho, que iniciara, aquando de uma “aula magna”.  

Nesse evento, discursando sobre a vida e a obra de Agostinho da Silva, a Professora Lúcia isto disse:

“É com grande esperança que vamos continuar. Quem sabe essa é a transformação da educação!?”

Efetivamente, parecia ser o reinício da transformação sonhada por Agostinho, concretizada por um punhado de educadores. Para fazer uma universidade, Agostinho foi de Lisboa para Brasília. Outros vieram de mais perto. Como o candango Antônio, migrante do município Senhora dos Remédios de Minas Gerais.  

Agostinho faleceu em finais do século passado. António partiu em 2020. O pioneiro assim era lembrado pela companheira, que com ele viveu por 64 anos:

Viemos em 1958 para o lugar onde Brasília nasceu. O António sempre foi muito trabalhador. A nossa vida foi de muita luta, mas muito feliz. Naquela época, tudo em Brasília era difícil. Eu comecei a vender cafezinho e cigarro para o pessoal que trabalhava aqui”.

Não sei se o António participou na construção da universidade, mas sei que Agostinho partilhou com os candangos um dos barracões onde dormiam os trabalhadores.

Certo dia, o Darcy entrou no barracão e entregou um envelope ao Agostinho:

“Aqui está o teu primeiro salário, meu amigo!”.

Agostinho voltou-se para os candangos, que por ali estavam, e perguntou:

“Alguém ainda não comeu? Alguém precisa deste dinheiro?”

Vários trabalhadores passavam por dificuldades e alguns até disseram passar fome. Agostinho abriu o envelope, retirou as notas e as distribuiu pelos candangos.

Inspirados num Francisco de Assis, havia quem fizesse “voto de pobreza”. E esse Mestre assumia uma ética da renúncia. Nunca teve CPF, nunca abriu conta bancária. Vivia como o seu sistema de valores lhe impunha que vivesse.

E foi fiel aos seus princípios:

“O homem não nasceu para trabalhar, mas para criar. A vida deve ser gratuita”.

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