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Grande Flor de Pedra, 18 de fevereiro de 2045

O dia oito de fevereiro de há vinte anos marcou uma viragem definitiva no rumo do projeto das Redes de Comunidades de Aprendizagem.

À semelhança do que acontecia nas reuniões da equipe da Escola da Ponte (começávamos sempre por ler um poema, escutar uma canção, partilhar “belezuras”), o encontro realizado no Museu Casa Darcy Ribeiro teve início com a recitação de um poema da autoria de… Darcy Ribeiro.

Que é que fiz, não fiz, de mim?

Que é que fiz na vida, da vida?

Quem sou eu? Esse eu que me sou.

Minhas mãos me pendem soltas. Inúteis para fazimentos. Só servem para escrever, acarinhar.

Diante das flores me extasio. Tolo, só reconheço rosas, orquídeas, cravos.

Quem sou eu, septuagenário, Que esgoto meu tempo de me ser aqui? Insciente, perplexo, inexplicado. Só cheio de saudades de mim. De tantos eus que fui.

Sidos. Idos.

Somos descartáveis, sei, mas dói.”

A “dor” de Darcy na fase terminal de um câncer se plasmou em frases liminares por si ditas e escritas, quando a sua vida já se esvaía. E nós – os vivos – ali estávamos, para “Praticar Darcy”, para agir em coletivos e libertar os sistemas de ensino de outro câncer – o da corrupção.

Onze anos antes, eu havia enviado uma carta para o lugar etéreo onde Darcy repousava de uma vida feita de dignidade e indignação. Vos deixo com excertos dessa carta;

Mumbuca, 26 de outubro de 2014,

“Querido Darcy, escutei o teu apelo, já quando o câncer consumia o teu último sopro de vida. Vi-te sofrer o exílio, enquanto o teu país dormia distraído, “sem perceber que era subtraído em tenebrosas transações”.

É lamentável que continues ostracizado, que o “projeto” de que falavas continue letra morta e que milhões de jovens sejam excluídos de uma vida digna. É triste, caro Darcy, que, junto com Anísio, Freire e Lauro, tu formes “o quarteto mais fecundo, fértil e injustiçado da história da educação em nosso país”. Mas, o teu espírito ainda deambula pelo Beijôdromo e o Anísio ainda mora na Livraria do Chiquinho. E nós aqui estamos, na casa que Niemeyer para ti concebeu.

Com os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) visavas oferecer ensino público de qualidade em período integral. Considerava-los "uma revolução na educação pública do País". Medidas de retrocesso na política educacional destruíram o projeto dos CIEP’s e perenizaram o velho paradigma escolar reprodutor de oprimidos e opressores, que o malogrado secretário de educação Paulo Freire tanto denunciou.

Eu sei que custa a crer, caro Darcy, mas é verdade. Se não me engano, foste tu quem fez esta afirmação:

“O Brasil, último país a acabar com a escravidão tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso.”

Não desesperes. Fica sabendo que já muitos educadores e escolas são sensíveis aos teus apelos. Depois de tenebrosos tempos, luminosos tempos hão-de vir.

Em Maricá, o nascer do sol vermelho-alaranjado se abre sobre lagoas que beijam o mar, as biguás voam sobre a calma dos dias que se enfeitam para gerar uma energia social mobilizadora de comunidades. É um lugar abençoado entre a serra e o mar, berço de povos originários.

Em 1832 Charles Darwin aqui aportou com sua equipe, visitou sítios arqueológicos e estudou o complexo ecossistema de restinga – foram os chamados “Caminhos de Darwin”. Por aqui também passaram os jesuítas – em 1584, o padre Anchieta aqui realizou o que chamou de “pesca milagrosa” – foram os “Caminhos de Anchieta”.

Aqui, pretendemos traçar novos rumos para a Educação de Maricá, do Brasil e do Mundo – serão os “Caminhos de Darcy”.

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Itaipu, 23 de fevereiro de 2045

Netos queridos, nesta cartinha, concluo a descrição de um lamentável episódio, para que os vindouros fiquem sabendo de acontecimentos de tempos sombrios. Perguntastes por que razão vos conto “estórias de antigamente” e eu vos digo que o “antigamente” não está tão longe quanto possa parecer. As casas da Comunidade eram da Comunidade. Só pessoas da comunidade e voluntários as poderiam utilizar. Foi isso que acordei com a “proprietária”. Qualquer “invasão” de alguma das casas seria considerada ilegal. Entreguei a minha biblioteca à guarda da Associação da Comunidade de Aprendizagem da Lagoa. Seria necessário exercer vigilância, para que ela não fosse devassada. Nas redes sociais, recebia mensagens como estas: “ Iniciaremos fundamentos de matemática, vamos usar a plataforma Khan. Descobri lendo um livro da nossa biblioteca…” Eu mantinha ajuda “científica” e as leituras fertilizavam as práticas: “Hoje foi incrível. Iniciamos projetos. Grupos de responsabilidade. Escolha de tutor. Pesquisa. ...