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Terras-de-Entre-Ambos-os-Aves, 28 de fevereiro de 2045

Houve um tempo em que enviava cartas aos meus netos, nas quais lhes dava a conhecer a “espuma dos dias” de tempos sombrios (se ainda houver Instagram, podereis lê-las em jpacheco.1951). E, no fevereiro de há vinte anos, regressei às páginas de um jornal que ajudei a fundar e a que dei o nome de Entre-Margens, para nele publicar algumas dessas cartas, para retomar o comentário de velhos eventos narrados em amarrotados papéis, cd-rom, cassetes e outras eletrônicas bugigangas, guardadas no baú das velharias. Retirado o pó e as teias de aranha, aqui vos trago memórias de esquecidos fatos, pedindo que me seja perdoado escrever em “brasilês”, entre o vernáculo de dois países, resquícios de acordos ortográficos e restos de tupi-guarani.

Num auspicioso final do fevereiro de há vinte anos, no meio do cortejo de horrores em que a comunicação social se tinha transformado, eis que surge uma boa notícia: pelo Despacho n.º 2362/2025, de 20 de fevereiro, o nosso conterrâneo Luís Henrique Fernandes era oficializado Novo Diretor Geral da DGAE (Direcção-Geral da Educação).
Acompanhei o seu percurso profissional, prenúncio de um desfecho anunciado: após passar pela direção de um agrupamento de escolas e de um centro de formação de professores, o Henrique alcançava o topo de uma carreira da administração pública. Eu o vira crescer rodeado de bons exemplos, amparado na amorosidade da Fininha e na inquebrantável moral do amigo Fernandes, pelo que não me surpreendeu que chegasse onde chegou.
Talvez o Henrique desconhecesse alguns atos públicos de que o seu pai foi protagonista. Durante o meu mandato como Presidente de Junta, defrontei situações caraterizadas pela corrupção moral. Porém, sempre contei com o amor à sua terra e a solidariedade de dois saudosos amigos e seres humanos extraordinários: o Aníbal e o Fernandes.
A sua qualidade de militante de um partido poderia condicionar as atitudes do amigo Fernandes em momentos críticos. Porém, ele sempre esteve do lado da decência. Em momentos decisivos, sempre votou segundo a sua consciência e um elevado senso ético, contrariando intenções de políticos moralmente corruptos.
O que esperar do Henrique no exercício das suas novas funções, se não seguir o exemplo do seu pai? Disso vos falarei em próximas cartas. Ao longo de mais de meio século, repeti à exaustão que a Escola carecia de um novo sistema ético e de uma matriz axiológica clara, baseada no saber cuidar e conviver, pois os projetos humanos contemporâneos não se coadunavam com as práticas escolares de que dispúnhamos. Requerer-se-ia que abandonássemos estereótipos e preconceitos e se transformasse uma Escola obsoleta numa Escola que a todos e a cada qual dê oportunidades de ser e de aprender.
Eu previa que, investido em novas funções, um avense ilustre seguiria o exemplo do seu pai. Muitas dificuldades o esperavam, pois a DGAE fora, em muitas ocasiões, um obstáculo à mudança e à inovação educacional. Por isso, se aconselhava prudência face à tradição burocrática do órgão, contrapondo-lhe o exercício de bom senso e a fundamentação científica das decisões. Nesse sentido, enviei ao amigo Henrique uma carta, que irei transcrever.
Num dia do setembro de vinte e três, abalei do Fundão na companhia do Hernâni e da Cátia, para ir ao encontro de educadores amigos, nas Caldas da Rainha – o João, a Carla, a Dora, o Luís, a Rita, a Adélia, a Andreia e outros extraordinários seres humanos. Tive, também, ensejo de reencontrar um velho companheiro de andanças sindicais, naquele tempo investido nas funções de Secretário de Estado da Educação: o António Leite.
(continua)

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