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Ubatuba, 22 de março de 2045

Queridos netos, no tempo em que os vossos olhos se habituavam ao céu do sul da vossa infância, o vosso avô atravessava esse mesmo céu no ventre de um pássaro de metal, respondendo aos apelos de educadores sequiosos do fermento que faz levedar os sonhos.

Nesse tempo, também as palavras voavam, mas no ciberespaço, nas asas que homens de engenho lhes deram. De modo que, cada vez que regressava do outro lado do oceano, já as ideias e sentimentos de muitos e maravilhosos educadores haviam chegado à minha caixinha do correio electrónico (correio electrónico era um utensílio que usávamos no tempo em que viestes ao mundo).
Dou-vos ler pedacinhos de uma dessas mensagens:
Caro Zé, eu continuo na minha pesquisa, juntei algumas coisas, servirão bastante para colocar "a pulga atrás das orelhas dos professores". Quem sabe eles não dão o famoso pulo do gato e reinventam formas de compreender o que está acontecendo com seus alunos?
É impressionante como os dirigentes dessa educação brasileira ainda não perceberam por onde se vai a Roma! É mexendo com o corpo e a alma dessa criançada.”
Recordo-me de que, há uns vinte e cinco anos, mais ou menos, um ministro escrevia com erros ortográficos. Poderia tê-lo feito por distração. Estou inclinado a admitir essa possibilidade. Nenhum mal viria ao mundo decorrente de erros ortográficos. Bem mais graves foram os erros cometidos por via da ignorância de ministros, para os quais as ciências da educação ainda eram ciências ocultas e que tomavam decisões fundadas em meras crenças e preconceitos.
Há vinte anos, tinham passado pelo ministério da educação médicos, advogados, políticos de carreira, empresários, jornalistas, contabilistas, militares, engenheiros, economistas, teólogos, administradores de empresas… cerca de meia centena de homens e apenas uma mulher.
Raros foram os pedagogos, que passaram pela função. Raríssimos foram os professores que, tendo usado da cadeira do poder, algo de útil fizeram. E. quando fizeram, não tiveram tempo de aquecer a cadeira ministerial.
Enquanto alguns incorriam no equívoco de atribuir os males do sistema a uma "pedagogia romântica", que ninguém praticou, que nenhuma escola adotou e que nem o ministro saberia dizer qual fosse, outros atribuíam a causa dos males aos seus predecessores.
Num breve tempo em que, gratuitamente, no Brasil, participei de grupos de trabalho e percorri corredores e salas dos ministérios da educação, quase só vi burocratas a passear papeis. E, nas reuniões, quase sempre prevaleceu um discurso rasteiro, eivado de senso comum pedagógico – cadê a Educação?
Certa vez, um ministro da educação admitiu que o ensino médio “estava no fundo do poço“.  No 3º ano do ensino médio, só 4% dos alunos sabiam o que deveriam saber no domínio da matemática. E o índice de proficiência em língua portuguesa ia pelo mesmo caminho, enquanto o MEC ia “empurrando a crise com a barriga”.
Naquele tempo, os professores do Ensino Superior queixavam-se dos baixos índices de proficiência dos alunos do ensino “inferior”. O “preparo” do Ensino Médio era condicionado pelo Enem. O Ensino Médio projetava a culpa no Fundamental. O Fundamental atirava culpas para a Educação Infantil. E esta responsabilizava as famílias, não podendo as famílias responsabilizar o Criador.
Há uns 30 anos, a casa do saudoso amigo Isaac Roitman se abria, para buscarmos soluções para “a crise, que era um projeto”. Vezes sem conta escutei os seus oportunos conselhos. A sua voz se calou, mas o seu exemplo ainda hoje ecoa em todos os lugares onde uma nova educação começa.

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No mês de abril do ano 2000, Rubem visitou uma escola, que viria a referir nas suas palestras, até ao fim da sua vida. A Escola da Ponte havia sido a primeira a consolidar a transição entre o paradigma da instrução – o do ensino centrado no professor – para o paradigma da aprendizagem.  Na esteira da Escola Nova, o aluno era o centro do ato de aprender. E o meu amigo surpreendeu-se com o elevado grau de autonomia dos alunos, comoveu-se com os prodigiosos gestos de solidariedade e manifestações de ternura, que ali presenciou.  Pela via da emoção, me trouxe para o Brasil e para ele vai a minha gratidão, nestas poucas linhas: Querido amigo, falando de tempo – essa humana invenção de que te libertaste –, reparo que já decorreram vinte e cinco anos sobre um remoto dia de abril, em que, pela primeira vez, partilhaste o cotidiano da Escola da Ponte e me convidaste a conhecer educadores do teu país.  Desde então, a minha peregrinação pelo Brasil das escolas não cessa, como não ce...