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Odemira, 23 de maio de 2045

 

Numa universidade, cerca de quinhentos docentes foram demitidos, no primeiro semestre de 2020. A redução das horas de trabalho era um dos aspetos de um movimento do ensino superior privado, que um sindicalista classificou de “imoral, mas legal”. Professores ficavam a saber da sua demissão, quando mensagens de pop-up surgiam na tela do computador. Um docente acreditava vir a ser demitido como retaliação por ter protestado com coordenadores em grupos de WhatsApp e avisado alunos da disciplina: 

“Os alunos ficaram três semanas sem minhas aulas e eles colocaram um professor de outra área, que não sabia o que fazer”. 

O instrucionismo assumia a sua máxima expressão economicista e não tardou que robots adentrassem salas de aula, substituindo dadores de aula. E, segundo rezava a notícia, os alunos “adoraram”.

Devido a uma “deficiência”, Freinet se libertou da sala de aula. Durante a Primeira Guerra Mundial, fora ferido nos pulmões. Compreendeu que os seus problemas respiratórios não lhe permitiriam “dar aula”. Por lhe ser difícil respirar dentro da sala, foi com os alunos para fora dela. 

O casal Freinet arejou a escola e provocou correntes de ar novo em muitas outras escolas. Imaginemos o que aconteceria, se muitos professores padecessem de problemas pulmonares, ou não pudessem utilizar as cordas vocais… 

Quatro séculos separam o Freinet moderno do Michelangelo renascentista. Recordo uma metáfora que li num livro. Perguntaram a Michelangelo como conseguira fazer a estátua de David, um maravilhoso mármore de cinco metros de altura. 

“Foi fácil.” – respondeu o gênio de Florença – “Olhei para o bloco de mármore e imaginei o David dentro dele. Depois, foi só retirar tudo o que não era David”.

Isso mesmo! Era preciso “retirar do mármore aquilo que não era David”. Era preciso libertar a escola daquilo que não fazia sentido. 

Quase contemporâneo de Michelangelo, Coménius concebeu uma teoria ainda hoje considerada “avançada” e advogava uma educação em ambiente escolar arejado. Mas, durante mais de quatro séculos, os alunos foram armazenados em “estufas calafetadas”, alinhados em classes “homogéneas” e tratados como se fossem um só. 

Havia escolas de salas com porta de fechar, cujo cheiro a mofo já ninguém sentia – eram as ditas “salas de aula normal”. Sempre que eu deparava com esse dístico afixado na porta das salas normais”, eu perguntava: Cadê as salas anormais? 

Em outras escolas, as salas tinham portas de abrir. Eram as tais “escolas anormais”. Portas fechadas eram reveladoras de uma cultura de autossuficiência. Mas as portas que fechavam a caixa negra da sala de aula, também poderiam ser portas abertas para o ar livre. Restava optar. 

Quando escrevi que os educadores precisavam mais de interrogações do que de certezas e que, dentro de uma aula, nada de útil se aprendia, houve quem reagisse com virulência. A recusa de agir resultava da recusa de ver e de pensar.

Galileu – como Michelangelo, homem do Renascimento – respirou o ar fétido dos subterrâneos da Inquisição, quando ousou desafiar os preconceitos da sua época.

Com lentes, que ele mesmo fabricava, Galileu atravessou os ares com um novo olhar, contrariando aqueles que defendiam as teses de Aristóteles e Ptolomeu. 

As ideias arejadas são peregrinas, permitem que a humanidade reoriente o seu complexo percurso. No século passado, houve professores que ousaram interrogar-se: 

“Por que há salas de aula?”

Olhos questionadores não encontravam nos livros das ciências da educação qualquer fundamento para que dadores de aula dessem aula em sala de aula.

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