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Ourique, 24 de junho de 2045

Longe da pátria, nos braços da mátria brasileira, bateu a saudade das noites de São João do Porto. Em viagem pelo Alentejo, faço uma pausa recuperadora de energia, para poder chegar a Tavira, à casa do filho professor. Perto de Ourique, fui em romagem ao Castro da Cola. Foi lá que, nos idos de noventa, me interpelaram:

“Você é um lírico, um romântico... um utópico.”

Saibam (dizia-se “sabei”, no modo imperativo de outros tempos…) que, ao longo de uma vida de mais de noventa anos, sempre me consideraram como uma espécie de aprendiz de utopias. O certo é que partirei deste mundo tão utópico quanto pude ser. E tão ou mais utópico do que quando tinha vinte anos.

No período renascentista, utopia era quase sinónimo de protesto. Múltiplas utopias habitavam o reino da fantasia e da ficção científica. Shakespeare glosou-as na peça “The Tempest”. E no século XIX, as percursoras tentativas de Fourier e Owen visaram passar ao real o ideal de Morus ou de Campanela. 

Nos idos de vinte e cinco, eu continuava a pugnar por um repetidamente prometido “futuro da educação”, que demorava a chegar. O Sistema estava preso no passado. Há vinte anos, as redes sociais continuavam a dar notícia do descalabro:

“(...) Fizeram de nós meros funcionários e das escolas meras repartições públicas de ensino de massas, transformadas em verdadeiras fábricas de papel!

Quem matou a escola pública? Os problemas disciplinares aumentaram e os professores lidam diariamente com atitudes disfuncionais dentro e fora da sala de aula, quanto às aprendizagens, talvez tenha chegado a hora de chamar as coisas pelos seus nomes. 

Os miúdos do sétimo ano parecem ter saído diretamente do primeiro ciclo e muito grave é observar alunos do nono ano de escolaridade com atitudes e conhecimentos de sétimo. São graves e preocupantes as lacunas, os problemas, o desconhecimento, a imaturidade, a incompetência nos mais variados domínios (...) a situação parece ser verdadeiramente calamitosa. 

Os filhos da pandemia não escrevem, não leem, não compreendem, não interpretam, não pensam. O desinteresse pelos conteúdos curriculares e a alienação pelo conhecimento em geral são perigosamente alarmantes. Retirem-lhes as redes sociais e ficaremos perante seres desprovidos de qualquer interesse. 

Se antes dos confinamentos, o vício da tecnologia já era preocupante, estes comportamentos de adição pioraram e nada voltará a ser como antes”.

“Nada voltará a ser como dantes”... Infelizmente, o “dantes” causador desse descalabro manter-se-ia, ainda por vários anos. Na Internet, na televisão, nos jornais, a mídia gostaria de ver “o homem morder o cão”, mas mantinha-se na divulgação do que de pior acontecia no mundo da educação: escândalos, ou devaneios de “especialistas”. Urgia um debate público fundamentado. Mas, o ministério fugia do debate sério e os meus companheiros das ciências da educação andavam distraídos.

Num tempo em que eu já estava prestes a me retirar, muita gente me pediu ajuda. Eram secretários de educação, diretores de agrupamentos e de escolas, famílias, educadores, comunidades. Eram pessoas atentas à necessidade de mudança e disponíveis para aprender a fazer diferente. Restaria agir no chão da escola, desobedecer a regulamentos, para cumprir a lei. 

Decidi convidar gente para o fazer. Desse “movimento” vos darei notícia. E daqueles educadores que o protagonizaram entre os idos de vinte e cinco e os alvores da “Idade da Educação” – finalmente, ei-la que chegou, para os filhos dos filhos dos nossos filhos, para as crianças e jovens vindouros.

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