Nos idos de vinte, vivíamos um tempo marcado por uma modernização de racionalidade técnica, burocrática, industrial, numa sociedade da informação caraterizada pela solidão e o individualismo. Políticos e “especialistas” acrescentavam camadas de tinta nova em velhos palimpsestos. Não entendiam que os projetos emergiam de sonhos, desejos, necessidades e que deveriam ser as comunidades as protagonistas de projetos de desenvolvimento humano sustentável.
Se bem que a obsessão uniformizadora e seletiva da escola viesse sendo questionada por esses “especialistas”, a maioria não fazia ideia alguma de como contribuir para a saída do caos. Aqueles que influenciaram sucessivos elencos ministeriais e conduziram a política educativa ao desastre evocavam ciências fósseis da educação. Fazendo teorização de teorias mal digeridas e jamais praticadas, alguns “iluminados” contribuíram para lançar um estigma sobre as ciências da educação.
Gestores escolares continuavam a assumir cargos por indicação de políticos e o “dever de obediência hierárquica” negava às escolas o direito à autonomia pedagógica, administrativa e financeira. Só quem não conhecesse a realidade do chão das escolas poderia crer que nelas fossem cumpridos os artigos 12º e 13º da LDBEN.
A introdução de uma Base Nacional Curricular Comum espúria apropriara-se do discurso contemporâneo das ciências da educação: “competências, educação integral, habilidades”, blá, blá, blá. E um “Parecer” sobre essa lei ilegal a legitimava, replicando o teor de leis nunca cumpridas: “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania” etc. etc. etc.
Bonito discurso: “difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum”. Sublinhando-se que “na implementação do projeto político-pedagógico, o cuidar e o educar [eram] indissociáveis funções da escola (…) para o desenvolvimento do aluno em todas as suas dimensões”.
A introdução da BNCC era um verdadeiro “poema”, mas a introdução não era a base curricular. A maioria dos professores jamais a leram. Continuariam a “dar aula” pelo manual didático, porque a BNCC era uma proposta fundada no paradigma instrucionista.
Currículo é um conceito de vasto espectro semântico e de difícil encontro de unanimidade. Kelly, Goodlad, Gimeno Sacristán e muitos outros autores diferem na sua definição. Deparei com dezenas de definições, que são reflexo da época e do contexto sociopolítico em que foram produzidas, ou da corrente pedagógica e teoria da aprendizagem em que estão filiadas.
Currículo é um conceito de vasto espectro semântico e de difícil encontro de unanimidade. Kelly, Goodlad, Gimeno Sacristán e muitos outros autores diferem na sua definição. Deparei com dezenas de definições, reflexos da época e do contexto sociopolítico em que foram produzidas, ou da corrente pedagógica e teoria da aprendizagem em que estavam filiadas.
O debate em torno da definição de um currículo único continuava “terra de ninguém”. Desde o alto das cátedras ao chão das escolas, dos sindicatos às associações patronais, todo mundo emitia opinião.
Gastei muito tempo e paciência, tentando que o debate sobre a proposta de uma base curricular fosse sério, fundamentado na lei e numa ciência prudente. Apelei aos meus companheiros das ciências da educação, mas cansei-me de falar para surdos cativos de corrupção intelectual e moral. E, quando me pediam opinião sobre a BNCC, a indignação a adjetivava com um termo… “radical”.
