E vamos ficando por aqui nas considerações que a BNCC merecia… havíamos chegado ao cúmulo do disparate. No Instagram e Facebook, poderíamos ler anúncios deste tipo:
“Quer economizar tempo e aumentar a sua renda? A BNCC te enlouquece? Cansou de tanto tentar e não conseguir? Temos a solução!
Você irá receber planejamentos para-o berçário, pré-escola e educação infantil.
Aulas prontas para professores. É só adquirir abrir e utilizar.
Garanta o preço promocional. Planos de aula prontos de 167 reais por 67,90”.
Numa sugestiva imagem internética, uma jovem falava ao ouvido de outra jovem:
“Amiga, eu encontrei planejamentos anuais de aulas prontos. Faça a diferença na vida dos seus alunos!”.
Havia quem comprasse tais produtos, pois secretários, diretores e supervisores aprovavam a compra. Abutres fossando na carcaça de um velho modelo educacional tentavam disfarçar a sua obsolescência, recorrendo a propaganda enganosa:
Outro fenómeno recorrente é o do “transbordamento curricular”.
Há uns 20 ou 30 anos, constava que, na câmara dos deputados, transitavam cerca de 250 projetos de lei com propostas de inclusão de novas matérias no currículo oficial.
A BNCC precisa de um “enxugamento”, que contemple apenas o essencial, um exercício de “homeopatia curricular”.
Também se apresentava como repositório de pressões corporativistas. Dependia de obscuras manobras de associações profissionais, que pugnavam por maior carga horária das respetivas disciplinas, ignorando que a inclusão de mais horas-aula é mera pedagogia contabilística.
Na década de setenta, fui selecionado para compor um grupo de trabalho a quem competia elaborar uma base curricular. Tratava-se da primeira iniciativa de substituição do currículo da escola da ditadura salazarista por um currículo “democrático”.
Na Ponte, tínhamos participado na experiência de desenvolvimento curricular chamada “fase de escolaridade”. Concluímos que o regime “ideal” deveria ser a “fase única”. O ministério decidiu ignorar o estudo. Instituiu a segmentação do ensino básico em três ciclos – sabe se lá porquê! – e a amarga surpresa foi acompanhada por um incidente crítico.
Ao final de muitos dias de árduo trabalho, fomos convocados para um “meeting”. O produto desses dias de intenso labor, o programa de capa verde, seria apresentado. Concebemos um currículo sem divisão em anos de escolaridade, mas a versão final estava subdividida em... anos de escolaridade.
Quisemos saber o porquê da alteração. Nos bastidores do “meeting”, um inspetor do ministério me confidenciou que os editores e livreiros tinham exigido vender manuais didáticos todos os anos e não de quatro em quatro anos.
Muitos amigos meus haviam participado no “Movimento pela Base”. Ficou difícil o diálogo. Longe de mim duvidar da seriedade e da dedicação do meu amigo André ou da minha amiga Tatiana, por exemplo. Louvável fora o seu envolvimento na elaboração do documento. Esses e muitos outros extraordinários educadores nunca admitiriam que, na sua generosa disponibilidade, tivessem sido usados, manipulados, mas foram-no. As suas excelentes contribuições serviram apenas para legitimar, enfeitar a base, porque a sofisticação do discurso viria a contrastar com a pobreza das práticas, que a base impunha e com os trágicos efeitos que ela causou.
O debate manter-se-ia num nível de indigência pedagógica. Todo mundo se “achava” no direito de dar “opinião”. Se o “achismo” prevalecia sobre a argumentação de natureza científica, a paciência se esgotou – desisti.
