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Mindelo, 26 de agosto de 2041

 Hoje, é dia de aniversário da Mãe Luiza. Já não tem idade e jamais deixei de sentir a sua inefável presença. Acompanha-me nas andanças da vida, tal como a aliança que ela usou no dia do seu casamento e que ajustei ao meu dedo anelar. A sua memória me ajuda a suportar as dores deste corpo envelhecido e se mistura com outras memórias, que desejaria erradicadas.

Por que invoco a doce Mãe Luiza à mistura com um arrazoado mais ou menos amargo? Suspeito de que se trata de uma cilada da memória. A de longo prazo está atafulhada de informação inútil. Lamentavelmente, se mistura com maternas recordações. Inevitavelmente, o vício de pensar a existência pelo viés da educação me conduz a reflexões mais ou menos pedagógicas.

Vivíamos num tempo de crise de valores, de uma crise educacional a exigir um compromisso ético, e fazíamos a nós mesmos duas perguntas: Para se refundar a educação, não teríamos de repensar a escola?

O amigo Severino dizia que cidadania era a medida da qualidade de vida humana, que se desdobrava apoiada na presença de mediações histórico-sociais. A Mãe Luiza viveu num ignominioso tempo da história e da sociedade. Preocupada pelo cuidar dos outros, não cuidava de si. A vossa bisavó Luiza precocemente nos deixou, imolando-se para dar vida, para que os filhos não ficassem órfãos de ternura.

Foram-lhe negados direitos elementares, cidadania, por obra de um modelo iníquo de sociedade e de uma escola reprodutora e das nefastas consequências dessa reprodução. Permiti que vos explique.

Oitenta e quatro meninas de dez a catorze anos deram à luz em São Paulo, no período de três meses. Havia um silêncio cúmplice perante essa e outras violências, que encobria os vinte e seis mil partos anuais, de crianças entre dez e catorze anos.

Havia um avanço de um fundamentalismo hipócrita, encorajado por discursos e ações que reforçavam o preconceito e a misoginia. Proteger as crianças era dever da família, da sociedade e do Estado, mas a sociedade falhava em todas as esferas de proteção.

Essa situação suscitou recordações de há meio século. Muitas crianças, que não frequentavam a Escola da Ponte nos visitavam, no seu contra turno. Os nossos alunos os acolhiam e com eles partilhavam aprendizagens. Certo dia, observei uma dessas crianças aproximando-se do prédio da Ponte. Parou na porta sempre aberta, espreitando. Convidei-o para entrar.

Observando as crianças, desejávamos que a grega scholé se fizesse permanente. Enquanto brincavam, evidenciavam o respeito a regras, aprendiam a conviver. Aprendiam que a sua liberdade não terminava onde começava a liberdade do outro, mas que começava onde a liberdade do outro começava. Aprendiam a ser, se reconheciam reconhecendo o outro. Aprendiam a não estar sozinhos.

Durante cerca de um mês, observei o modo como aquele menino interagia com os nossos alunos. Com preocupação, me apercebi de que, apesar de bem acolhido, quase não falava e não fazia amigos. Quando se tentava chegar à fala com ele, esquivava-se. Pensei em ir à sua escola, conversar com a sua professora, manifestar-lhe a minha preocupação e me disponibilizar para com ela colaborar. Não cheguei a fazê-lo. Essa criança se suicidou com veneno de escaravelho.

A tragédia foi motivo de profunda reflexão. Ao tentar identificar os motivos que uma criança pudesse ter para pôr fim à sua vida, identificamos alguns “solitários” entre nós. Perante tristes silêncios de alunos nossos, decidimos criar dois dispositivos – o tutor e a caixa dos segredos – canais de comunicação, que abreviaram situações de discreto sofrimento. 

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