Por
que invoco a doce Mãe Luiza à mistura com um arrazoado mais ou menos amargo?
Suspeito de que se trata de uma cilada da memória. A de longo prazo está
atafulhada de informação inútil. Lamentavelmente, se mistura com maternas
recordações. Inevitavelmente, o vício de pensar a existência pelo viés da
educação me conduz a reflexões mais ou menos pedagógicas.
Vivíamos
num tempo de crise de valores, de uma crise educacional a exigir um compromisso
ético, e fazíamos a nós mesmos duas perguntas: Para se refundar a educação, não
teríamos de repensar a escola?
O amigo
Severino dizia que cidadania era a medida da qualidade de vida humana, que se
desdobrava apoiada na presença de mediações histórico-sociais. A Mãe
Luiza viveu num ignominioso tempo da história e da sociedade. Preocupada pelo
cuidar dos outros, não cuidava de si. A vossa bisavó Luiza precocemente nos
deixou, imolando-se para dar vida, para que os filhos não ficassem órfãos de
ternura.
Foram-lhe
negados direitos elementares, cidadania, por obra de um modelo iníquo de
sociedade e de uma escola reprodutora e das nefastas consequências dessa
reprodução. Permiti que vos explique.
Oitenta e quatro
meninas de dez a catorze anos deram à luz em São Paulo, no período de três
meses. Havia um silêncio cúmplice perante essa e outras violências,
que encobria os vinte e seis mil partos anuais, de crianças entre dez e catorze
anos.
Havia um
avanço de um fundamentalismo hipócrita, encorajado por discursos e ações que
reforçavam o preconceito e a misoginia. Proteger as crianças era dever da
família, da sociedade e do Estado, mas a sociedade falhava em todas as esferas de proteção.
Essa
situação suscitou recordações de há meio século. Muitas crianças, que não frequentavam a Escola da Ponte
nos visitavam, no seu contra turno. Os nossos alunos os acolhiam e com eles
partilhavam aprendizagens. Certo dia, observei uma dessas crianças
aproximando-se do prédio da Ponte. Parou na porta sempre aberta, espreitando.
Convidei-o para entrar.
Observando
as crianças, desejávamos que a grega scholé se fizesse permanente.
Enquanto brincavam, evidenciavam o respeito a regras, aprendiam a conviver.
Aprendiam que a sua liberdade não terminava onde começava a liberdade do outro,
mas que começava onde a liberdade do outro começava. Aprendiam a ser, se
reconheciam reconhecendo o outro. Aprendiam a não estar sozinhos.
Durante cerca de um mês, observei o modo como aquele
menino interagia com os nossos alunos. Com preocupação, me apercebi de que,
apesar de bem acolhido, quase não falava e não fazia amigos. Quando se tentava
chegar à fala com ele, esquivava-se. Pensei em ir à sua escola, conversar com a
sua professora, manifestar-lhe a minha preocupação e me disponibilizar para com
ela colaborar. Não cheguei a fazê-lo. Essa criança se suicidou com veneno de
escaravelho.
