Por mais de cinquenta anos, cultivei os valores que a Ponte me inculcou. Na trilha de vida do meu amigo Krenak, vivi experiências coletivas, aprendendo autonomia relacional. Vivi companheirismo, aprendendo solidariedade ativa - rejeitei a competitividade negativa, para aprender responsabilidade social.
Em todos os lugares por que passei, isso encontrei. Mas, também, deparei com individualismo, egoísmo, desrespeito. Tentei contornar obstáculos. Compreendi que o maior obstáculo à mudança era eu e me dispus a reelaborar a minha cultura pessoal e profissional.
Diz o Eclesiastes que há um tempo para cada coisa. E o Bob o citou, a par de outras canções do tempo em que eu partilhava o sonho do “Make Love, Not War”. No ano em que o Bob compôs “The Times They Are A-Changin”, decidi abandonar a profissão de montador eletricista, de me desviar de uma carreira de engenharia, para vir a ser professor. Processo lento e controverso, pois também se tratava de trocar um salário chorudo por um salário de miséria, de passar por dificuldades financeiras. Aliás, os maridos das professoras desse tempo diziam que as suas esposas eram professoras para “ganharem prós alfinetes”. Diziam que “o salário do marido é que sustentava a casa”. E, se as professoras se apaixonassem por um “pé-rapado”, o Salazar as proibia de casar-se com um pretendente que “não tinha onde cair”.
O Bob anunciava que os tempos estavam mudando:
“Venham, críticos, que profetizam com suas canetas / Mantenham seus olhos abertos / Venham, senadores, deputados, escutem o apelo / Sua antiga tradição está envelhecendo / Venham, mães e pais / E não critiquem o que vocês não conseguem entender.”
A minha geração foi uma geração perdida, dizimada nas guerras da Guiné e do Vietnam, assassinada pelo LSD, aburguesada, capitalizada. O suicídio da Janis e do Jim marcaram o fim de um tempo. Caí no mundo desamparado, enojado de um vil metal, que levou o meu pai (inocente) à prisão, nutrindo profundo asco pelo dinheiro que, escasseando, viria a matar a minha mãe de exaustão de mil noites de agulha e dedal.
Como cantava o Bob, os tempos estavam mudando. A Ditadura caía de podre, a guerra na África era insustentável. A minha geração quis tomar o seu futuro em suas mãos.
Em 2025, os tempos ainda estão mudando. E, volvido meio século, aceitei participar da milésima tentativa de mudança. O maior obstáculo era a minha cultura, a cultura pessoal e profissional dos professores, que deveria ser somada à representação que as famílias e a sociedade tinham de escola.
Mas, se os pais amavam os seus filhos e para eles desejavam o melhor, se os professores amavam os seus alunos e queriam para eles o que de melhor houvesse, a reelaboração cultural aconteceria.
O maior obstáculo seria eu, se não assumisse um compromisso ético com a educação.
Quando decidi ser professor, eu só sabia dar aula, não sabia ser professor. Se tivesse continuado dando aula em sala de aula, sabendo que uma parte significativa dos meus alunos não iria apreender, eu deveria seguir um de dois caminhos: ou aprendia a ensinar de modo que todos aprendessem, ou iria embora da profissão de professor. Se eu continuasse a dar aula, consciente de condenar jovens à ignorância, não seria professor, eu seria um crápula.
Quando aceitei reelaborar a minha cultura pessoal e profissional, tomei consciência de que o maior aliado de um professor é o outro professor e de que o maior inimigo do professor “diferente” é outro professor – o professor da sala do lado, da escola mais próxima – esse era e ainda é o segundo dos obstáculos.
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