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Cajazeiras 29 de novembro de 2045

Pedi à Eliza que me emprestasse palavras para esta carta, excerto de um e-mail de há vinte anos:

“Não imaginas a minha alegria de ser compelida a ler, mesmo quando os olhos se fecham involuntariamente e a cabeça e o corpo clamam por repouso.  Obrigada, muito obrigada, por reacender a chama no meu coração de educadora (...) adoro instigá-los a questionar sobre o que veem, leem, ou pretendem conhecer. É fantástico, maravilhoso o brilho nos seus olhos, quando fazem alguma conexão com algo que já sabiam, ou que finalmente faz sentido.”

Nas iniciativas de Darcy se fez sentir a influência de Anísio, Nise, Freire, Nilde, Florestan e muitos outros ilustres educadores – infelizmente, Darcy não escutou a recomendação de Lauro de que não fizesse “pedagogia predial”.

O início da década de sessenta foi a época de ouro da educação brasileira. Depois, sucedeu a destruição de projetos como o dos CIEP ou dos Colégios Vocacionais, o exílio.

Nos idos de vinte e cinco, de milhares de projetos que, ao longo de meio século, eu ajudara, restavam algumas dezenas. Então, dirigi a educadores resilientes o convite para praticar um Darcy atualizado.

Era frustrante ver a chama criativa se apagar dentro de salas de aula de prédios a que chamavam “escolas”. Por saber que a chama se apaga e a memória dos homens é curta, reabri a gaveta onde guardo recados de alunos e folhas de diários. Encontrei alguns registos dos idos de 76.

O tempo amareleceu as folhas dos cadernos onde as crianças deixaram ficar pedaços de vida. Aos nove anos, o Fernando disse o que queria ser quando fosse grande, escreveu os projetos do seu futuro, para sempre destruídos num estúpido acidente de bicicleta, que ele comprara com os primeiros salários de tecelão. Outros não chegaram a adultos, por se deixarem envolver nas teias que o tráfico tecia. Houve, também, quem abandonasse a escola e optasse pelas lições que a escola da vida oferecia. Outros diziam “querer mudar de vida”.

O sem sentido da Escola se traduzia no que me diziam os pais:

“O senhor professor que me diz? Eu acho que o Jorge já tem idade para ir com o tio para as feiras. Se não vai, só me apanha vícios, más companhias.

A Cristina já não anda aqui a fazer nada. E olhe que o que ela gosta mesmo é da costura. O senhor fecha os olhos... e eu nem me importo que me cortem no abono. Assim, sempre já vai ganhando algum para a casa”.

Que quer, Professor Zé? A gente é pobre e a minha Gracinda já anda, vai para oito meses, na confecção. Ainda não lhe pagaram, mas dizem que, se continuar assim, lhe vão dar dez contos por mês. Mas, se ela disser alguma coisa, ainda vem parar-me à rua! Ela até faz sábados e, às vezes, até domingos. Mas que quer que lhe faça? Quando há uma encomenda urgente, também trabalha à noite”.

Entre a escola e vida, se construíam e destruíam destinos. Volvido meio século, as situações de abandono e insucesso escolar eram de outra natureza, mas produziam os mesmos efeitos.

Nas minhas conversas com professores, muitas vezes escutei expressões deste tipo:

“Eu gostaria de mudar a minha prática, mas...”

Eu respondia com uma rude interpelação:

“O que o impede de mudar? Gostaria, ou quer? Decide!”

Havia quem quisesse, mas não quisesse, quem tentasse e hesitasse, embalando a incoerência num blá, blá, blá, entre o lamento e a autocomiseração. Desisti de me preocupar com inovadores não-praticantes. Investi toda a minha energia na fraterna ajuda àqueles que, no chão da escola, concretizavam princípios.

A propósito: no mês de novembro de 2025, o meu amigo Leo publicou um “desabafo” que vos darei a conhecer na cartinha de amanhã.

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