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Bagé 10 de dezembro de 2045


Deixarei convosco alguns documentos garimpados na casa velha, como a “pérola” que junto a esta cartinha, um desenho feito por um aluno, numa sala de aula da Idade Média – a imagem reflete o enfado de um aluno submetido à reclusão em sala de aula. Há vinte anos, poderíamos escrever sobre “aula chata da Idade Média”, mas seria algo redundante. No tempo em que ainda se “dava aula”, imperava uma “chatice” idêntica à da Idade Média.

No baú das velharias achei uma cartinha escrita em 2025. Ela aludia a um seminário: “Desafios para uma educação de futuro”. Um dos painéis desse seminário tinha por designação: “Estratégias para salas de aula menos chatas” (sic). Juro que era essa a designação do painel! No tempo em que ainda se “dava aula” em sala de aula, a aula não só era chata como prejudicial.

Uma geração de auleiros (neologismo criado pelo meu amigo Pedro Demo), ignorantes das ciências da educação, produzia e reproduzia males irreparáveis, em sala de aula – as escolas enfeitavam a falência do modelo instrucionista com frivolidades, inúteis paliativos e infantilizações metodológicas.

Só me dei conta da origem dessa praga, quando, perto dos 40 anos de idade, fui aluno de uma faculdade de educação. Foi grande o “choque” causado pelo que ali presenciei. Foi enorme a decepção, perante a desonestidade intelectual e a falsidade ideológica refletida nas práticas… em salas de aula.

Tinha lido e relido obras dos mestres de antanho. Havia escutado palestrantes famosos, que eu admirava e praticava. Naquele tempo, ainda não havia power point nem Internet e os formadores provindos das faculdades onde se formavam novos professores dissertavam sobre a necessidade de centrar ano aluno o processo de aprendizagem, citavam Montessori, Dewey, Claparède, Freinet, Freire, Steiner…

Era enorme a minha expectativa, quando convidado para ser professor de uma escola superior de educação. logo a esperança de encontrar práticas coerentes com o discurso se esvaiu. Nela ainda havia salas de aula, os candidatos a professores eram enquadrados em turmas, ainda havia provas, testes, exames,

ausência total da expressão concreta das propaladas teorias. Ali, ainda se “dava nota” e não encontrei vestígios de uma avaliação formativa, contínua, sistemática. Ali, ainda se “dava aula” em sala de aula e se controlava entradas e saídas de alunos, ainda se “marcava falta”.

Meio século decorrido, convidavam-me para realizar palestras em faculdades de educação. dentro delas, deparava com o mesmo cenário de há 50 anos. À entrada, uma catraca me intimidava. Ultrapassada a catraca, me conduziam para um auditório feito de fileiras de cadeiras, tudo pronto para um frontal anónimo “auleiro”. Me pediam a “apresentação”, o power point (em 2025, ainda se usava) e eu respondia que tinha algum “power”, mas não usava o “point”. Deslocava-me até à ponta do palco e perguntava: “O que quereis saber?”

A resposta era nenhuma. Aqueles jovens quase professores nada perguntavam – tinham passado quase 20 anos escutando a perguntas que nunca fizeram – pois tinham estado sequestrados em salas de aula, fechados em prédios a que chamavam “escolas”, “vigiados e punidos” com faltas.

Em 2025, a “coqueluche” desse tempo sombrio era a catraca com identificação facial. A “Catraca Premium” estava dotada de “Leitor Biométrico, Display Inteligente, Design em LEDs, Braços em Inox, Sinal Sonoro e USB”. E eu pensava que a “deschatização”, regeneração e humanização da Educação, talvez devesse começar por uma “descatracalização” maciça das faculdades de educação.

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