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Sal, 2 de dezembro de 2045

Conversando com a Alma, senti saudades de Cabo Verde. Por lá andei, no início dos anos 70, no embalo das “mornas”, no sabor da cachupa, em casas sem reboco – a pobreza digna de um povo sempre à espera da chuva me fizeram  escutar a Cesária e o Ildo Lobo.

Na Ilha do Sal, lado a lado com empreendimentos turísticos, homens trabalhavam 12 horas diárias sob um sol forte. O sal corroía-lhes as entranhas e a esperança de vida era de menos de 30 anos. O Milton os celebrou:

“Trabalhando o sal / Pra ver a mulher se vestir / E ao chegar em casa / Encontrar a família a sorrir / Filho vir da escola / Problema maior de estudar / Que é pra não ter meu trabalho / E vida de gente levar”.

Em 1971, na “hora di bai”, as saudades do que era uma “província ultramarina” gravaram marcas indeléveis e apelativas de um regresso. Lá voltei, nos anos 90, regresso amargo a lugares que guardava na memória, memórias desfeitas num regresso desencantado.

De passagem pelo Tchão Bom, visitei o Campo do Tarrafal. Lá estava o mesmo banco de pedra da fotografia tirada há décadas, o mesmo fosso, o mesmo portão de ferro, as mesmas barracas habitadas por “presos políticos e educadores revolucionários”.

Uma mistura de curiosidade, audácia e inconsciência dos riscos que corria, abriu-me o acesso ao conhecimento direto (ainda que limitado) de tenebrosos segredos de uma ditadura mascarada de “evolução na continuidade”. 

Nos anos noventa, o acesso ao campo dos degredados estava isento de perigos. Na presença de lugares, há muito percorridos, penetrei espaços na primeira visita interditos, perdi-me em deambulações de passos e reflexões. Tudo me parecia tão distante, tão absurdo. Não restavam vestígios do sofrimento. Onde se teria escondido a morte, companheira de exílio, destino do preso atirado para a caldeira húmida de uma cela de isolamento?

"Mi dá caneta, siô?!"

As vozes das crianças mendicantes arrancaram-me daquele torpor. A emoção do reencontro cedeu lugar a uma estranha tristeza. A indiferença do grupo de turistas que me acompanhava era igual à indiferença dos meus companheiros de viagem de há trinta anos.

Enquanto uns teciam comentários boçais acerca do lugar, outros confessavam "nunca terem ouvido falar da prisão do Tarrafal". Para que um sentimento de intensa revolta não me levasse a cometer algum desmando, remeti-me ao silêncio e afastei-me do grupo, até à conclusão da visita.

Se não houvesse uma placa afixada à entrada do “campo da morte” a evocar tempos sombrios, seria como se nunca tivesse existido um lugar onde os melhores educadores foram sacrificados por terem alimentado ideais de liberdade e democracia. Se, como Cícero dizia, "tivessem triunfado em vida os que triunfaram na morte" ou se os vivos fizessem justiça à memória dos que condenavam à indiferença, talvez vivêssemos tempos menos sombrios.

Carneiro Pacheco (Ministro da Instrução, entre 1936 e 1940) era nome de uma rua e de um centro comercial (ironia do destino…), da sede do concelho em que a Ponte nasceu. Esse Pacheco fora personagem central da fase mais tipicamente fascista da ditadura, um dos maiores responsáveis pela consolidação de mecanismos de repressão – citava o ditado que dizia que "o medo é que guarda a vinha" – encarnava o "espírito do Tarrafal", nome do lugar para onde o professor Adolfo Lima foi degredado juntamente com outros educadores, que apenas tinham cometido um "crime": o de querer educar pela e para a liberdade.

Não sei se existiria alguma rua Adolfo Lima, em Portugal. Que eu saiba, não existia escola que o tivesse como patrono – a Escola de 2025 era a mesma de 1971.

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