Conversando com a Alma, senti saudades de Cabo Verde. Por lá andei, no início dos anos 70, no embalo das “mornas”, no sabor da cachupa, em casas sem reboco – a pobreza digna de um povo sempre à espera da chuva me fizeram escutar a Cesária e o Ildo Lobo.
Na Ilha
do Sal, lado a lado com empreendimentos turísticos, homens trabalhavam 12 horas diárias sob um sol forte. O sal corroía-lhes as
entranhas e a esperança de vida era de menos de 30 anos. O Milton os celebrou:
“Trabalhando
o sal / Pra ver a mulher se vestir / E ao chegar em casa / Encontrar a família
a sorrir / Filho vir da escola / Problema maior de estudar / Que é pra não ter
meu trabalho / E vida de gente levar”.
Em 1971,
na “hora di bai”, as saudades do que era uma “província
ultramarina” gravaram marcas indeléveis e apelativas de um regresso. Lá
voltei, nos anos 90, regresso amargo a lugares que guardava na memória, memórias
desfeitas num regresso desencantado.
De
passagem pelo Tchão Bom, visitei o Campo do Tarrafal. Lá estava o mesmo banco
de pedra da fotografia tirada há décadas, o mesmo fosso, o mesmo portão de
ferro, as mesmas barracas habitadas por “presos políticos e educadores
revolucionários”.
Uma
mistura de curiosidade, audácia e inconsciência dos riscos que corria, abriu-me
o acesso ao conhecimento direto (ainda que limitado) de tenebrosos segredos de
uma ditadura mascarada de “evolução na continuidade”.
Nos anos noventa,
o acesso ao campo dos degredados estava isento de perigos. Na presença de
lugares, há muito percorridos, penetrei espaços na primeira visita interditos,
perdi-me em deambulações de passos e reflexões. Tudo me parecia tão distante,
tão absurdo. Não restavam vestígios do sofrimento. Onde se teria escondido a
morte, companheira de exílio, destino do preso atirado para a caldeira húmida
de uma cela de isolamento?
"Mi
dá caneta, siô?!"
As vozes
das crianças mendicantes arrancaram-me daquele torpor. A emoção do reencontro
cedeu lugar a uma estranha tristeza. A indiferença do grupo de turistas que me
acompanhava era igual à indiferença dos meus companheiros de viagem de há
trinta anos.
Enquanto
uns teciam comentários boçais acerca do lugar, outros confessavam "nunca
terem ouvido falar da prisão do Tarrafal". Para que um sentimento de
intensa revolta não me levasse a cometer algum desmando, remeti-me ao silêncio
e afastei-me do grupo, até à conclusão da visita.
Se não
houvesse uma placa afixada à entrada do “campo da morte” a
evocar tempos sombrios, seria como se nunca tivesse existido um lugar onde os
melhores educadores foram sacrificados por terem alimentado ideais de liberdade
e democracia. Se, como Cícero dizia, "tivessem triunfado em vida
os que triunfaram na morte" ou se os vivos fizessem justiça à
memória dos que condenavam à indiferença, talvez vivêssemos tempos menos
sombrios.
Carneiro
Pacheco (Ministro da Instrução, entre 1936 e 1940) era nome de uma rua e de um
centro comercial (ironia do destino…), da sede do concelho em que a Ponte
nasceu. Esse Pacheco fora personagem central da fase mais tipicamente fascista
da ditadura, um dos maiores responsáveis pela consolidação de mecanismos de
repressão – citava o ditado que dizia que "o medo é que guarda a
vinha" – encarnava o "espírito do Tarrafal",
nome do lugar para onde o professor Adolfo Lima foi degredado juntamente com
outros educadores, que apenas tinham cometido um "crime": o de querer
educar pela e para a liberdade.
Não sei
se existiria alguma rua Adolfo Lima, em Portugal. Que eu saiba, não existia escola
que o tivesse como patrono – a Escola de 2025 era a mesma de 1971.
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