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Boa Esperança, 28 de dezembro de 2043

O dealbar de 2024 foi tempo de reencontros e reinícios. De Portugal chegavam o Luís e a Filipa (destes amigos vos falarei, em breve). Outros amigos partiam do Brasil, para que, como dissera Agostinho, o Portugal da Educação desembarcasse em Portugal. Era um tempo de lembrar ausências e reencontros. Fui ao baú das velharias e de lá retirei uma crónica do amigo Rubem, que nos fala das ausências e reencontros do Natal de todos os dias:

“Menino, lá em Minas, havia uma coisa, uma única coisa que eu invejava nos católicos: no Natal, eles armavam presépios e nós, protestantes, tínhamos árvores de Natal. Mas as árvores, por bonitas que fossem, não me comoviam como o presépio: uma cabaninha coberta de sapé, Maria, José, os pastores, ovelhas, vacas, burros, misturados com reis anjos e estrelas, numa mansa fraternidade, contemplando uma criancinha. 

A contemplação de uma criancinha amansa o universo. Os católicos mais humildes tinham alegria em fazer os seus presépios. As pobres salas de visita se transformavam num lugar sagrado. As casas ficavam abertas para quem quisesse se juntar aos reis, pastores e bichos. E nós, meninos, pés descalços – os sapatos só eram usados em ocasiões especiais – peregrinávamos de casa em casa, para ver a mesma cena repetida.

Nós, meninos, com inveja, tratávamos de fazer os nossos próprios presépios. Os preparativos começavam bem antes do Natal. Enchíamos latas vazias de goiabada com areia, e nelas semeávamos alpiste ou arroz. Logo os brotos verdes começavam a aparecer. O cenário do nascimento do Menino Jesus tinha de ser verdejante. 

Sobre os brotos verdes espalhávamos bichinhos de celuloide. Naquele tempo ainda não havia plástico. Tigres, leões, bois, vacas, macacos, elefantes, girafas. Sem saber, estávamos representando o sonho do profeta que anunciava um dia em que os leões haveriam de comer capim junto com os bois e as crianças haveriam de brincar com as serpentes venenosas. 

A estrebaria, nós mesmos a fazíamos com bambus. E as figuras que faltavam nós as completávamos artesanalmente com bonequinhos de argila. No mundo mágico tudo é possível. Era uma cena “naif”, primitiva, indiferente às regras da perspectiva. 

Um presépio verdadeiro tem de ser infantil. E as figuras mais desproporcionais nessa cena tranquila éramos nós mesmos. Porque, se construímos o presépio, era porque nós mesmos gostaríamos de estar dentro dele. Éramos adoradores do Menino, juntamente com os bichos, as estrelas, os reis e os pastores – não importando que estivéssemos de pés descalços e roupa suja.

Eu sempre me perguntei sobre as razões por que essa cena, em toda a sua irrealidade onírica, mexe tanto e tão fundo comigo. Não sinto alegria ao contemplar a cena. Sinto uma tranquila beleza triste. Gosto dela. É uma ausência aconchegante. 

O Drummond escreveu um poema chamado Ausência. Não sei a propósito de quê – se era por causa de um amor perdido, de uma pessoa querida que estava longe – a saudade doía. E ele escreveu, para se explicar e consolar: 

“Por muito tempo achei que a ausência é falta / E lastimava, ignorante, a falta / Hoje não a lastimo / Não há falta na ausência / A ausência é um estar em mim / E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços / que rio e danço e invento exclamações alegres / porque a ausência, essa ausência assimilada / ninguém a rouba mais de mim.” 

O presépio nos faz querer voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiquíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer. 

Na manjedoura, dorme uma criança. O nome dessa criança é o nosso nome.”


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Itaipu, 23 de fevereiro de 2045

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