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Morada das Águias, 28 de maio de 2044

Espero que gosteis de saborear a poesia em prosa do amigo Ademar. A segunda parte do inspirado texto começava assim:

“Uma miríade de micro-saberes sobre os trajetos possíveis dos educáveis na escola e na sociedade abateu-se, como um espesso e quase impenetrável nevoeiro de racionalidade, sobre o campo de visão dos práticos e profissionais da educação, turvando e hipertrofiando os seus olhares e levando-os a agir, não como promotores inteligentes e solidários de percursos de aprendizagem e de desenvolvimento pessoal diferenciados e humanamente qualificados, mas como peças menores e oscilantes de uma complexa, gigantesca e, tantas vezes, estúpida engrenagem de adestramento cognitivo e de (como diria Rubem Alves) pinoquização cultural. 

A educação é um caminho e um percurso. Um caminho que de fora se nos impõe e o percurso que nele fazemos. Deviam ser, por isso, indivisíveis e indissociáveis. Como os dois olhares com que nós abrimos ao mundo. Como as duas faces, a visível e a oculta, do que somos. 

Os caminhos existem para ser percorridos. E para serem reconhecidos interiormente por quem os percorre. O olhar para fora vê apenas o caminho, identifica-o como um objeto alheio e porventura estranho. Só o olhar para dentro reconhece o percurso, apropriando-se dos seus sentidos. 

O caminho dissociado das experiências de quem o percorre é apenas uma proposta de trajeto, não um projeto, muito menos, o nosso próprio projeto de vida. O caminho está lá, mas verdadeiramente só existe quando o percorremos – e só o percorremos quando o vemos e o percecionamos dentro de nós. Outra coisa, aliás, não pretendia significar o poeta António Machado, quando escreveu:

“Caminhante, é o teu rasto 

o caminho, e nada mais;

caminhante, não há caminho,

o caminho faz-se a andar.” 

O caminho é o rasto que nele projetamos. Daí que pensar a educação apenas em função dos caminhos – e outra coisa, afinal, não têm feito nas últimas décadas os chamados “cientistas da educação” – é pensar a educação que ainda o não é, é pensar a educação simplesmente na ótica dos educadores topógrafos, é abrir a objetiva do olhar para fora e fechar a objetiva do olhar para dentro. São os caminhos que fazem os caminhantes e não o contrário.”

O “impenetrável nevoeiro de racionalidade” urdido por teoricistas palestrantes de cuspe e power point muito dano causaram aos “práticos e profissionais da educação”, e se constituíram em obstáculos à mudança e a inovação. 

No 28 de maio de daqui a dois anos, se completarão cem anos sobre o início da Ditadura de Salazar. 

A Escola da Ditadura deixou um rastro de destruição, que se prolongou, democracia adentro. Nos idos de vinte, já meio século havia decorrido sobre uma “manhã de abril libertadora”, nos atos na administração educacional ainda eram visíveis as marcas do autoritarismo herdado do Velho Regime.

O Ademar tinha consciência dos malefícios da Velha Escola. E decidira trabalhar na Escola da Ponte, por ver nela uma oportunidade de ser útil ao esforço de regeneração de um “sistema educativo”, que deseducava. E falava de caminhos: 

“O caminho é o rasto que nele projetamos.”

Falava de um caminho, em particular, daquele que vivenciara… na Ponte.

Outros caminhos haveria, certamente, mas esse “caminho de mudança”, que (em 1976!) fora “caminho de inovação”, tinha apontado um “itinerário”, que não deveria ser percorrido, mas experienciado e reinventado. 

Foi o que fizemos, nos idos de vinte e quatro. Reunimos educadores éticos. lançamos projetos inspirados na Ponte, reelaborando “mapas de mudança e de inovação”.


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