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Bom Jesus dos Perdões, 23 de agosto de 2044

Transcrevo parte de uma carta recebida do amigo Sérgio, vinte anos atrás. Entre Bom Jesus dos Perdões e Atibaia, se gestava um dos mais belos projetos de que vos dou notícia. 

O Sérgio pressentia que a maldade humana rondava aquele lugar: 

“Assisti a criação do Projeto Rosende. Já conhecia a Janaína, passei a conhecer Eulália, Matoso, Ana e outros... 

Uma luta admirável. O problema é que "quem é contra" sempre quer resultados mágicos e rápidos (que a escola velha e carcomida nunca sonhou em dar). 

Assisti a ataques vindos de professores de dentro, de outras escolas (um dia alguém precisará explicar a burrice que é escolas públicas competindo) e de secretários. 

Pude ir, uma vez, dar uma oficina e ver como transformações são incrivelmente difíceis, porque exigem que as pessoas que as propõem já estejam mudando a si mesmo. 

Por mais que haja sucessos e fracassos, concordâncias e discordâncias, sempre terei fé nos que se abrem para a transformação ocorrer, do que nos que nos erguem barricadas e nos atacam com canhões de fofocas, assédio moral, desmotivação, retaliações e outras coisas. 

Por fim, me desculpo. É uma necessidade de "dialogar" e diminuir a solidão que me bate, quando estou entre os adultos, na escola. 

Espero que não esteja sendo um estorvo. É a forma de eu tornar viva a rede social que sempre prima pelo diálogo ultra superficial. 

Abraço! De Atibaia, onde vivo. De Perdões, onde semeio.”

O Sérgio semeava em terreno fértil, mas consciente dos obstáculos. Sabia que, se o maior aliado de um professor é o outro professor, também sabia que o maior inimigo de um professor ético, é… o outro professor.

Isso acontecia num tempo em que deputados propunham que se acabasse com o regime de ciclos e com a progressão continuada. Não sabiam que nunca os ciclos foram concretizados (os manuais dirigiam-se apenas a “ano de ciclo”) e que a progressão continuada não poderia ser extinta, porque nunca havia sido posta em prática (apenas se praticara “aprovação automática”).

Enfim! O sistema educativo permanecia dependente de decisões de políticos ignorantes e infestado de corrupção intelectual e moral. 

Nesse tempo de novas inquisições, prosperavam os fundamentalismos. Acontecia a perseguição daqueles que, como o Sérgio, amavam a infância e buscavam caminhos de humanização da escola. 

Talvez sem que o soubesse, o Sérgio fazia eco de palavras do Lauro, que, na década de sessenta do século passado, na sua obra “Escola no Futuro”, assim se manifestava: 

Não esqueçamos o exemplo de duas professoras, publicamente expulsas de uma cidade paulista, porque tiveram a ousadia de, na cadeira de Biologia, referirem-se às teorias evolucionistas de Darwin! 

Uma senhora veio à imprensa carioca denunciar o fato altamente periculoso de professores permitirem que os alunos estudassem estilística comentando obras “pornográficas” como as do Jorge Amado.”

Queridos netos, em 2044, não restam vestígios desses tempos sombrios. Vivemos num mundo que aprendeu com os erros do passado. Mas, vos asseguro que, há cerca de vinte anos, assistíamos a aberrações idênticas àquelas que o Mestre Lauro Lima descrevia.  

Séculos atrás, o Papa Pio V havia criado Index Librorum Prohibitorum, um índice dos livros proibidos. No Brasil, ocorrera algo semelhante, enquanto se proclamava que a Terra era plana. Talvez até assistíssemos ao ressurgimento do medieval trivium ou do quadrivium 

Por mais inverosímil que vos possa parecer, o espírito da Idade Média da Educação ressurgira, erguera-se do túmulo, na segunda década do século XXI.


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