O meu projeto de vida profissional teve início em 1970. Interrogava-me e interrogava companheiros de profissão:
“Por que será que eu dou aulas tão bem dadas e há sempre alunos que não aprendem, que precisam de apoios, ou que até reprovam?”
Invariavelmente, esta era a resposta:
“Eles não conseguem acompanhar o ritmo das aulas. Têm dificuldades de aprendizagem. Alguns são deficientes”.
Justificava-se o insucesso com base na teoria dos dotes ou através de teorias de natureza sociocultural ou econômica:
“Eles são pobres. Os pais são analfabetos. Não têm livros em casa”.
As origens da educação compensatória remetiam-nos para práticas como as de Froebel, nos primeiros jardins de infância das favelas alemãs, no advento da primeira revolução industrial, ou as “Casas dei Bambini” de Maria Montessori, nas favelas italianas.
Sabiamos que arriscar mudança em tempo de ditadura acarretava nefastas consequências. E que eram múltiplos os obstáculos a defrontar: uma formação precária, uma sociedade doente, a “síndrome do vira lata”… Mas eu insistia em perguntar:
Se, dando aula, não conseguimos garantir a todos o direito à Educação, porque continuamos dando aula?
Fiz essa pergunta a mim mesmo. E entrei num doloroso processo de reelaboração da minha cultura profissional, em ruptura com o sistema de ensinagem.
Eu era um professor como qualquer outro. Dava as minhas aulas, como qualquer outro professor, cumpria ordens dos superiores hierárquicos, até ao dia em que, com mais duas professoras, tomei uma decisão ética. Faltava completar esse gesto de amor e de intuição pedagógica com o seu fundamento científico, pois não há prática sem teoria.
Durante sessenta anos, saboreei teoria. Fiz amizade com mestres ilustres, que produziram belos nacos de prosa. Como este, da autoria do meu amigo e mestre Pedro Demo:
“Sala de aula é o que mantém a escola presa ao passado fordista ou similar, como consta dos “Tempos Modernos” de Chaplin, repetitiva, monótona, linear, sequencial, insuportável, desumana.
Não tem como objetivo cuidar da aprendizagem do estudante, mas de transmitir conteúdo que frequentemente o estudante sequer entende.”
A crença nas virtudes da velha escola ainda mantinha os professores na ilusão de uma possível melhoria de um modelo em decomposição – uma estranha normose se instalara. No agosto de vinte e quatro, ousei convidar professores, famílias, comunidades, para pôr fim à “escola chata, autoritária e conteudista”. Considerada a escola como nodo de uma rede de aprendizagem, seria necessário constituir parcerias, estimular o espírito inventivo e assumir responsabilidade social, dentro do princípio ético que nos diz que tudo o que for inovado o deva ser para benefício coletivo.
Ousei criar redes de comunidades. Propus a realização de um encontro, no final de agosto. Depois, ofereci a essas redes um projeto de formação – um projeto de reelaboração da cultura pessoal e profissional.
A preocupação maior era a de cuidar da pessoa do professor, elevar-lhe a autoestima, o estatuto social. Aceitar que muitos não ousassem mudar, por medo das consequências. Nada impor a quem discordasse, ou criticasse. Tentar estabelecer uma comunicação dialógica, com os gestores. Usar de compreensão e compaixão para com eles. E de muita resiliência, de muita paciência… para não desistir.
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