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Minaçu, 28 de outubro de 2044

Em tempo de densas trevas, como eram os de 2020, quisera que a sociedade brasileira escutasse uma das vozes que poderia ajudar a produzir alguma claridade: o Mestre Milton Santos.

O modelo cívico, cultural e político, causa da maior parte dos males do brasil dos anos vinte, fora herdado de séculos da prática da escravidão. E esse Mestre descendente de escravos assim descrevia o drama: 

“A escravidão marcou o território, marcou os espíritos (…) Um modelo cívico subordinado à economia, uma das desgraças deste país”

Devido a essa geopolítica, o centro do mundo não era o homem mas o dinheiro: “Isso abriu espaço para qualquer forma de barbárie, pela qual a gente deixa morrer crianças, velhos e adultos, tranquilamente”

Milton sabia que a geografia de tenebrosos tempos se orientava por velhos princípios e permanecia colonizada por modelos educacionais provindos do norte escravocrata. 

Quando, no princípio deste século, cheguei ao Brasil, apercebi-me de que eram escassas as referências a autores brasileiros nas bibliografias de artigos e teses. E raramente encontrava nas bibliotecas das faculdades de pedagogia obras de autores negros quase brancos e as obras de um branco quase negro de nome Lauro. 

Os professores brasileiros “norteavam” os seus estudos, porque desconheciam os estudos produzidos no sul. Não sabiam que a proposta da italiana Montessori fora reinterpretada por Agostinho da Silva e que o ideário de Pestalozzi fora posto em prática por Eurípedes. Mas, viriam a aprender o Piaget abrasileirado pelo Lauro e o pragmatismo do norte-americano Dewey adaptado pelo Anísio, quando os méritos de Milton foram reconhecidos, no tempo em que os educadores brasileiros começaram a recuperar autoestima e a dissipar a síndrome do vira-lata. 

Queridos netos, cada coisa a seu tempo, como diriam as vossas tetravós, que tão boas contadoras de estórias eram. Se a cidade de Tecla – uma das “Cidades Invisíveis” – nunca fora concluída, para que ninguém pudesse iniciar a sua destruição, por que se considerava irreversível o triste destino de um povo? 

Nos anos vinte, os avós contavam estórias feitas de tristeza, de pessimismo e alguma fé. Passado esse tempo, uma nova moral as esperançou. Na década de vinte, o apelo de Milton foi escutado. Na humana geografia deste país, aconteceria cidadania plena, através do aprender a viver em comunidade. 

A ação humana agia como instrumento de mudança, porque, finalmente, o propósito e o comprometimento estavam presentes e coletivamente cultivados. 

Como me emocionava o fato de o eminente geógrafo ter deixado na Terra um rastro de amor incondicional. Que afirmação audaz ele fez: 

“Comunicação é troca de emoção”

Apesar de te sofrido na negra pele um duplo ostracismo, sempre se manteve semeador de paz. O seu exemplo nos ajudava a continuar aspirando ao fim de um tempo em que ainda “existiam duas classes sociais, a dos que não comem e a dos que não dormem com medo da revolução dos que não comem”.

A experiência humana não poderia continuar a ser destruída pelo modelo escolar e civilizacional imposto a frágeis criaturas e instituições. Quando os brasileiros conseguiram identificar, não o que os separava, mas aquilo que os unia, aconteceu um inédito viável. Nos condomínios de luxo, como nas favelas, foram derrubados os muros e reconstituídas redes de vizinhança. 

Em meados dos anos vinte, a profecia de Milton se concretizou, na recriação de amorosos vínculos, no resgate de identidades, na recuperação de uma convivência fraterna – foi quando o Brasil começou a praticar Darcy.


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