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Grande Flor de Pedra, 25 de novembro de 2044

Nos idos de vinte e quatro, continuava sem entender por que razão muitas escolas erguiam barricadas e bunkers pedagógicos, quando as imperfeitas instituições que as inspiraram já denotavam alguma abertura à sociedade. 

Vivíamos ainda o tempo da proto-história da Educação e da Humanidade. Mas a demanda civilizacional já levara a que até mesmo nas prisões soprassem ventos de liberdade e que muitos quartéis já fossem transformados em pousadas para turistas. O que levaria as escolas a se refugiarem atrás de muros protegidos, a se fecharem na concha da autossuficiência?

As escolas dos idos de vinte eram habitadas por excelentes profissionais. Porém, se alguns consentiam que as degradações os degradassem, outros desistiam. Agitava-os, incomodava os acomodados, desassossegava-os. 

Diziam:

“Tens razão, é preciso mudar esta escola ensimesmada, que só produz insucesso, exclusão, violências… Mas, eu tenho medo de errar.”

A insegurança e o medo, sempre o medo! A idealização da profissão em contraste com a rudeza do seu exercício, um exercício solitário, uma solidão absurda. 

O medo paralisava. Porém, não era o medo a causa última da inércia. Nos idos de vinte, uma subcultura profissional era reificada. O vosso avô ousava fazer perguntas que nenhum palestrante dessa época faria, embora soubesse a sua origem e necessidade de desocultar.

Isso mesmo, netos queridos: eu tinha muitos defeitos, mas não era hipócrita nem desleal para com os meus companheiros de profissão. E arriscava fazer três perguntas básicas.

“Minha amiga (meu amigo), como trabalha?”

Logo escutava a invariável resposta:

“Eu dou aula.”

Ironizava, para não lhes pedir que fundamentassem porque tinham optado por serem dadores de aula (auleiros, como diria o Mestre Pedro Demo):

A colega (o colega) não dá aula. Vende aulas. E bem baratas, por sinal.”

Sorriam. E surgia a segunda pergunta:

“Em sala de aula, “dando aula”, consegue ensinar aos seus alunos tudo aquilo que é suposto ter de ensinar, consegue garantir a todos o direito à educação?

Mais uma resposta óbvia era dada:

“É claro que não consigo. Ninguém consegue.”

A terceira pergunta surgia rude e sem resposta:

“Sabendo que, “dando aula” em sala de aula nega o direito à educação a muitos seres humanos, irá continuar “dando aula” em sala de aula?”

Raramente, alguém tomava a decisão ética de mudar, para que fosse possível garantir o direito à educação. Um sistema de ensino moralmente corrupto não permitia veleidades. 

O que quer que fosse que um professor fizesse para afetar o status quo das escolas era algo positivo – como dizia o povo, em linguagem de gente, “pior do que está não pode ficar”. Portanto, erremos, aceitando os erros como degrau para a transcendência, para uma… reelaboração cultural.

O Rogers escrevera: 

“Quanto mais um indivíduo é compreendido e aceite, maior tendência tem para abandonar as falsas defesas que empregou para enfrentar a vida, e para progredir numa via construtiva”. 

E um Marcos, que vivia do outro lado do mar, perguntou-me:

“Como pode estar a Escola enraizada no mundo de hoje – único ponto de partida para a transformação – e, ao mesmo tempo, inaugurar os valores, as práticas e as relações que já inauguram o mundo que almejamos construir?”

A resposta era simples: errando. Errar, aceitar o erro (o nosso e o dos outros) era o caminho para uma possível redenção da Escola. Errar no duplo sentido da palavra: quer se trate de vaguear por caminhos incertos, quer signifique o desacertar, que fique a intenção e o reconhecimento de que “herrare humanum est”.


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