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Ribeirão das Neves, 11 de março de 2045

No início de março de há vinte anos, um novo capítulo se abria na saga da recriação da Escola. Uma nova construção social de educação nascia no Sul e tomava forma por mediação de educadores éticos, confirmando a existência de seres que o Brecht diria serem indispensáveis.

Se os educadores se libertavam da síndrome do vira-lata, faltava libertarem-se do ostracismo da obra de pedagogos de nomeada. Era escasso o conhecimento da extraordinária obra de Lauro Lima, que, na década de 1960, fez a reinterpretação brasileira do pensamento de Piaget. Urgia redescobrir Anísio Teixeira, que, já nos anos trinta, defendia a necessidade de mudar a escola, para que esta se tornasse um instrumento de mudança social. Faltava rever as teses de Agostinho da Silva, companheiro de utopias de Darcy Ribeiro. Era preciso recuperar a obra, na prática, a obra de Paulo Freire, tão injustamente maltratado em tempos sombrios.
Uma nova geração de educadores surgia, uma ruptura paradigmática se anunciava, que não poderia prescindir do património que ignorados pedagogos nos legaram. Mas, se os professores eram formados em métodos passivos, poder-se-ia esperar que desenvolvessem métodos ativos? Se foram formatados numa inútil acumulação cognitiva, iriam adoptar o modelo transmissivo, perpetuar um modelo epistemológico falido.
Nas minhas deambulações pelo Brasil das escolas, encontrava muitos anónimos educadores, que não desistiam do sonho das suas vidas e teciam uma rede de fraternidade, fonte de esperança, num Brasil condenado a acreditar que, pela Educação, iria chegar ao exercício de uma cidadania plena. Com eles aprendi a amar este país e a respeitar e ajudar os educadores que o refaziam. Eles me instigavam a penetrar mais fundo em contraditórias realidades.
Poderia citar uma lista interminável de escolas onde a reelaboração cultural acontecia, onde as concepções e práticas educacionais, discretamente, evoluíam. Porém, em muitos outros lugares onde se deveria aprender, os vícios instrucionistas condenavam milhões de alunos à evasão, ao abandono intelectual… ao suicídio.
No último reduto da transmissão de informação, professores auleiros eram uma espécie condenada extinção, mas rejeitavam defrontar obstáculos à mudança.
O primeiro obstáculo era o “auleiro” (assim lhe chamava o amigo Pedro). Na formação inicial, áulicos e professaurios universitários injetavam nos formandos os vírus da normose e da incoerência. No início da carreira, a administração educacional induzia nos candidatos a professores os vírus da funcionarização e da corrupção moral, parindo “dadores de aula”, funcionários alienados, manipulados por funcionários servis instalados em patamares superiores da hierarquia do “sistema”.
Ao mínimo sinal de mudança, o professor “disruptivo” se apercebia de que, se o maior aliado do professor era outro professor, o maior inimigo do professor era outro professor. Por via de denúncias, calúnias, tentativas de assassinato de caráter, sentia os efeitos da ditadura da administração.
Esse era o segundo dos obstáculos. Sem generalizar (porque conheci muitos administradores sérios e competentes), os corredores dos ministérios e adjacências eram lugares mal frequentados, antros de ignomínia, por onde vagueavam zelosos e servis funcionários, no dizer a Sophya, “túmulos caiados onde germinava calada a podridão”.
O processo movido contra a Fabi não era um caso isolado. Mas, pela primeira vez, uma educadora desrespeitada, ameaçada e perseguida não estava sozinha.

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Itaipu, 23 de fevereiro de 2045

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