Pular para o conteúdo principal

Santo Antônio da Patrulha, 26 de março de 2045

Oitenta e quatro meninas de dez a catorze anos deram à luz em São Paulo, no período de três meses. Havia um silêncio cúmplice perante essa e outras violências, que encobria os vinte e seis mil partos anuais, de crianças entre dez e catorze anos.

Havia um avanço de um fundamentalismo hipócrita, encorajado por discursos e ações que reforçavam o preconceito e a misoginia. Proteger as crianças era dever da família, da sociedade e do Estado, mas uma sociedade doente falhava em todas as esferas de proteção.
Essa situação suscitou recordações de há meio século. Muitas crianças, que não frequentavam a Escola da Ponte nos visitavam, no seu contraturno de escola. Os nossos alunos os acolhiam e com eles partilhavam aprendizagens. Certo dia, observei uma dessas crianças aproximando-se do prédio da Ponte. Parou na porta sempre aberta, espreitando. Convidei-o para entrar.
Observando as crianças, desejávamos que a grega scholé se fizesse permanente. Enquanto brincavam, evidenciavam o respeito a regras, aprendiam a conviver. Aprendiam que a sua liberdade não terminava onde começava a liberdade do outro, mas que começava onde a liberdade do outro começava. Aprendiam a ser, se reconheciam reconhecendo o outro. Aprendiam a não estar sozinhos.
Durante cerca de um mês, observei o modo como aquele menino interagia com os nossos alunos. Com preocupação, me apercebi de que, apesar de bem acolhido, quase não falava e não fazia amigos. Quando se tentava chegar à fala com ele, esquivava-se. Pensei em ir à sua escola, conversar com a sua professora, manifestar-lhe a minha preocupação e me disponibilizar para com ela colaborar. Não cheguei a fazê-lo – essa criança se suicidou ingerindo veneno de escaravelho vendido na loja do seu pai.
A tragédia foi motivo de profunda reflexão.Ao tentar identificar os motivos que uma criança pudesse ter para pôr fim à sua vida, identificamos alguns “solitários” entre nós. Perante tristes silêncios de alunos nossos, decidimos criar dois dispositivos – o tutor e a caixa dos segredos – canais de comunicação, que abreviaram situações de discreto sofrimento. Se as escolas eram arquipélagos de solidões, lançamo-nos num anular de insuspeitas insularidades.
Quando encontrávamos um recado depositado na “caixa dos segredos”, de imediato combinávamos uma amena conversa. Os autores dos recados sempre aceitaram partilhar o “lugar de estar sozinho” com o seu tutor. E tinham dado um nome original ao meu “lugar de estar sozinho”. Por ser o professor mais antigo, chamaram-lhe a “pedra da idade da pedra”.
Nela sentado, muitas mágoas de infância ajudei a enxugar, em conversas de incondicional e amorosa escuta. Muitos dramas e pesadelos ajudei a mitigar e a dissipar.
Como escrevi nas cartinhas para a Alice, calhou de uma gaivota pousar sobre a pedra da idade da pedra, uma pedra que não era igual a outras pedras, uma pedra detentora de inefáveis dons, de uma clara magia, onde se partilhava segredos.  E o coração das gaivotas sossegava.
Sempre que uma gaivota nela pousava e cerrava os seus olhos, subia da pedra da idade da pedra um suave perfume e eflúvias meditações se produziam. De imediato, do recanto mais íntimo de um lugar onde os homens supõem não haver lugar para a imaginação, assomavam suaves gestos de solidariedade de humanos pássaros.
Sempre disponíveis, carinhosos, pacientes, esses “humanos pássaros” – seres a que se costumava dar o nome de professor – com singelos gestos, afastavam preocupações e medos, ajudavam as crianças a reconstruir futuros, a não estarem sozinhas.

Postagens mais visitadas deste blog

Barcelos, 13 de setembro de 2025

No mês de abril do ano 2000, Rubem visitou uma escola, que viria a referir nas suas palestras, até ao fim da sua vida. A Escola da Ponte havia sido a primeira a consolidar a transição entre o paradigma da instrução – o do ensino centrado no professor – para o paradigma da aprendizagem.  Na esteira da Escola Nova, o aluno era o centro do ato de aprender. E o meu amigo surpreendeu-se com o elevado grau de autonomia dos alunos, comoveu-se com os prodigiosos gestos de solidariedade e manifestações de ternura, que ali presenciou.  Pela via da emoção, me trouxe para o Brasil e para ele vai a minha gratidão, nestas poucas linhas: Querido amigo, falando de tempo – essa humana invenção de que te libertaste –, reparo que já decorreram vinte e cinco anos sobre um remoto dia de abril, em que, pela primeira vez, partilhaste o cotidiano da Escola da Ponte e me convidaste a conhecer educadores do teu país.  Desde então, a minha peregrinação pelo Brasil das escolas não cessa, como não ce...