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Ubatuba, 3 de abril de 2045

Muitas vezes, escutei duas perguntas e respetivas respostas dadas pelos alunos da Ponte, quando mostravam a escola aos visitantes:

“Onde é o gabinete do diretor?”
“Aqui, não tem.”
“Mas, onde está o diretor?”
“Está com os alunos. Onde deveria estar?”
Oficialmente, eu era o diretor e passava oito horas no trem (perdoai que em brasilês eu me expresse), que me levava ao ministério, para prestar esclarecimentos requeridos pelos inspetores.
Eu falava alhos, eles respondiam bugalhos. Dito de outro modo: eu lhes dizia por que não dava aula, porque não havia turma, nem carga horária; eles falavam de aula, de turma, de carga horária – o mesmo diálogo de surdos, que acontecia, sempre que eu conversava com diretores de ajuntamentos de escolas. A grande maioria dos diretores estava longe da prática pedagógica, há muitos anos. Lidavam com papéis, quando deveriam trabalhar com alunos.
Com pais de alunos, depois em equipe de professores, fizemos orelhas moucas às ameaças do ministério. E exigíamos que intimidações e ameaças fossem feitas por escrito e com fundamentação legal e científica – o ministério deixou de nos aborrecer e de fazer perder tempo em viagens a Lisboa. Apenas as “autoridades locais”, políticos moralmente corruptos e alguns professores de escolas próximas continuaram a tentar destruir a Ponte.
Tal como fez a Fabi, recusamos ser coniventes com o genocídio educacional perpetrado pela Administração Escolar. O modelo educacional imposto às escolas nunca havia conseguido, nem conseguiria garantir a todos os alunos o direito à educação.
Sucessivas avaliações revelavam índices de desenvolvimento preocupantes. Desde há décadas, se tentava disfarçar a dura realidade, recorrendo a paliativos, a inúteis assessorias, consultorias, reformas, programas e planos ineficazes.
Sucediam-se os decretos, os despachos, as portarias. O erário público pagava gongóricos relatórios produzidos por inúteis grupos de trabalho. Acumulavam-se no ministério e nas universidades dispendiosos “estudos”, que não logravam ir além de óbvias “recomendações”.
A compra e venda de inutilidades, desde projetos “pronto-a-vestir” a plataformas instrucionistas era lucro de empresas e dilapidação do erário público. Planejamentos de aula prontos a usar, projetos “pronto-a-vestir”, plataformas instrucionistas, pactos, programas, capacitações.
Era imenso o mercado educacional do desperdício. Empresas e fundações patrocinavam “modismos pedagógicos” e recusavam apoiar projetos efetivamente inovadores. Milhões, bilhões de reais (e de euros) foram desperdiçados no pagamento a assessores, consultores e outros inúteis especialistas, em ruinosos contratos com empresas fornecedoras de paliativos (aulas de “socioemocional”, de “educação para a cidadania”, outras “invertidas e híbridas”), estudos e mais estudos, teses, milhares de ações de (de)formação, proporcionando lucro de empresas, postergando a mudança, inviabilizando a inovação.
Deveríamos pedir contas, perguntar por resultados, reclamar evidências do impacto do investimento feito em educação. E a quem atribuir a responsabilidade da dilapidação do erário público, de tanta ineficiência administrativa? 
Era imposto o silêncio aos educadores que alertavam para a hecatombe escolar causada por um modelo educacional obsoleto. Se insistissem na nobre e fundamentada dissidência, esses educadores eram alvo de assédio moral.
No abril de vinte e cinco, uma reserva moral de educadores se organizou num coletivo – e pediu contas.

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Itaipu, 23 de fevereiro de 2045

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