Quando foram criadas quotas para acesso de negros à universidade, aceitei-as como medida compensatória e… transitória. Porém, lancei mais um “aviso à navegação”: acaso não regenerássemos um sistema educacional promotor de desigualdade e exclusão social, as quotas se justificariam perenemente. E assim foi. Não foi desmontada a indústria do “cursinho para o vestibular”, nem foi erradicado um ENEM que nada avalia e funciona como instrumento de “darwinismo social”.
Mesmo
convicto de que deveria apostar no “politicamente incorreto” e não pactuar com
“pedagogias compensatórias”, vim até Brasília, para participar na “Marcha das
Mulheres Negras por Bem Viver”. E aproveitei para ir conversar com amigos que
ocupam centros de decisão e precisam de ajuda para cumprir um projeto político
emancipatório.
No mês de junho de 2020, nos Estados Unidos e em outros países, milhares
de pessoas se manifestavam contra o racismo. Na
Internet, um rapper comentava a fotografia de um manifestante deitado no chão,
de cara tapada e punho semi-erguido:
"Por mais corpos que caiam no chão e por mais sangue
que se derrame, cadáveres serão sempre aqueles que vagueiam sem alma nem
compaixão".
Mais
de um século decorrido sobre a Lei Áurea, gente negra continuava a sentir
literalmente na cor da pele, a injustiça, o preconceito e o medo – “o medo de simplesmente existir", porque
o racismo poderia ter saído dos códigos legais, mas não saíra das consciências
e comportamentos.
Nesse
distante mês de junho, Miguel, criança de 5 anos, negra e pobre, morria por
querer estar perto de sua mãe, faxineira de um prefeito. E um cidadão negro nos
contava a sua experiência de racismo, na escola – após uma colega dizer que
"estava apaixonada por um rapaz negro" a professora respondeu: "Beijar
um negro? Argh!’
O “10 de Junho” foi chamado “Dia da
Raça” pelo regime salazarista. Havia posições eugenistas e racistas no Estado
Novo. Com essa comemoração, a ditadura enaltecia as caraterísticas de um
Império colonial, que quase nenhum outro país possuía.
Com o advento da democracia, o “10 de
Junho” passou a chamar-se “Dia de Camões
e das Comunidades”. Celebrava-se o poeta, que escreveu que “todo o mundo é
composto de mudança, tomando sempre novas qualidades”. O vate português foi
contemporâneo do achamento do Brasil, mas estava na contramão de uma
colonização predatória, escravocrata… racista. Mas, o significado do seu verso “mudam-se
os tempos, mudam-se as vontades” somente seria entendido cinco séculos
depois.
Agostinho
da Silva, outro português ilustre, criador do Instituto de Letras da
Universidade de Brasília, escreveu, na década de sessenta:
“Portugal
desembarcou na Ásia, desembarcou na África, Portugal desembarcou na América. Só
falta Portugal desembarcar em… Portugal”.
No final
da década de vinte deste nosso século, as palavras de Agostinho talvez pudessem
significar que uma nova educação estava a nascer no Sul e migraria para o
hemisfério norte – talvez um novo Renascimento desapontasse, sem escravatura,
sem racismo.
O
conceito de raça era vazio e perigoso. Biologicamente, não há e nunca houve “raças
humanas”. Esse conceito era usado para justificar discriminação, exploração e outras
atrocidades. Tal como outros traços culturais,
essa triste herança de uma colonização escravocrata era
uma chaga aberta na sociedade, reproduzida pela educação
familiar, societal e escolar.
Antes
que me esqueça, peço que não vos esqueçais de cumprir as tarefas que vos tenho
recomendado. Amanhã, vos direi porque o faço.
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