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Mostrando postagens de outubro, 2023

Maricá, 31 de outubro de 2043

O amigo Sérgio mostrava-se preocupado com o meu silêncio: “Espero que esteja bem e feliz, apesar dos horrores a que temos assistido, diariamente, que põem à prova nossa crença e esperança na humanidade — mas, ao mesmo tempo, acentuam a necessidade de uma educação que fomente a fraternidade e o respeito à diferença.”  Um famoso “influencer” (era assim que se designava quem, em redes sociais, tiha “seguidores”) comentava os “horrores”:   "O mundo está pesado. Uma espessa camada de tristeza está sobre nós. Cada um reage a seu modo. Alguns estão agressivos, outros intolerantes, muitos estão deprimidos. É preciso construir esperança, derramar nos espaços que habitamos uma poeira de amor e sentimentos positivos." Estávamos em pleno período das conferências municipais preparatórias do Plano Nacional de Educação 2024-2034. A elas assistia, atento, mas reservado, obsequiosamente calado. Já participara na preparação do PNE 2014-2024 e alertara para o risco de repetirmos erros de antanh...

Santo André de Cabrália, 30 de outubro de 2043

As redes sociais dos idos de vinte contribuíam para criar solidões, mas, também, para intensificar circuitos de comunicação, para estabelecer diálogo. Mensagens fraternas eram trocadas. Como esta, que recebi, no outubro de vinte e três:  “Obrigado, Zé, por transcrever os sentimentos que nós mesmos não sabemos explicar com palavras, apenas sentir. A tecnologia social das "formiguinhas" salvará o micromundo Mirante do Rio Verde, tenho certeza. Bem-vindo! Chegou na hora certa.  Eu li esse texto em prantos. Senti dor, amor, alegria e tristeza, todos ao mesmo tempo. Me sinto e me vejo nessas crianças, nos tornamos um só, pelo espaço tempo de todas manhãs que passamos juntos. Sou aluna, educadora, mãe e criança ao mesmo tempo nesse espaço.”  “Eppur Si Muove”… quatro séculos após Galileu negar a sua teoria heliocentrista, para escapar da condenação de morrer na fogueira, “formiguinhas” inquietas e dedicadas à causa das crianças, rompiam as trevas de novas inquisições, para afirm...

Icaraí, 29 de outubro de 2043

Queridos netos, Ontem, certamente, sentistes o travo amargo presente na evocação da partida da minha amiga Rosinha. Há dias assim, cinzentos, marcados por uma infinita tristeza. Ao longo da minha já longa existência, tal como qualquer ser humano, aprendi a transcender o desgosto, a sofrer metamorfoses e, sem ver um mundo cinzento com lentes cor-de-rosa, fiz jus à memória de entes queridos, ajudando a pintá-lo com claridades. Transmutemos a dor das perdas em cenário de regeneração. Percorramos o “Caminho de Santiago”, evocado por José Saramago: “No meio da paz noturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea.” Na mesma senda de renovação, Renato Braz cantava, apontando o Sul, norteando a Terra: “Quem me dera / Olhar as estrelas / Sem pensar nas cruzes ou nas bandeiras / Quem dera as ...

São Paulo, 28 de outubro de 2043

O outubro de vinte e três findava, os conflitos não cessavam e duas desditosas notícias me chegavam. Na Palestina, quase metade das vítimas da guerra eram crianças. Em São Paulo, falecia a minha amiga Rosinha. Só Deus leva os que ama. E nos roubou, em plena juventude, um dos mais belos seres humanos que conheci. Ainda guardo algumas missivas recebidas dessa grande amiga, entre o tempo das visitas ao casebre do Capão Redondo até à criação da sua biblioteca, ao seu casamento e à mudança para uma casinha simples, no subúrbio da São Paulo. “Querido Professor, peço perdão pelo desencontro. Que pena! Queria muito conversar contigo. Mas, meu celular estava desligado, enquanto eu estava na sala de aula. Gostaria de revê-lo. Quando o senhor voltar, a gente se vê. Quando o senhor chegar em SP, é só me ligar e eu irei ao seu encontro. Se quiser vir ficar aqui na escola, fique a vontade. Tenha uma semana abençoada, repleta de amor, felicidade. Aproveite muito os momentos com seus netinhos.” No r...

Niterói, 27 de outubro de 2043

Em 2014, ano da aprovação do Plano Nacional de Educação 2014/2024, participei num processo de pesquisa conducente a um levantamento de situação da Educação, num estado da União.  Por meio de entrevistas direcionadas a diretores, coordenadores e professores, com suporte de questionário estruturado, foi realizado o diagnóstico dos indicadores educacionais propostos para a educação básica (média de aluno/turma, média de horas-aula diárias, taxa de distorção idade-série, índice de escolaridade, índice de evasão escolar, índice de analfabetismo, percentual de taxa de rendimento escolar etc. Realizado o diagnóstico, elencamos conclusões e formulamos propostas.  Durante a vigência do PNE, efetuamos idênticas pesquisas em outros municípios e estados e propusemos dispositivos para concretização das vinte metas do Plano Nacional de Educação. Em próximas cartinhas, analisarei as vinte metas do PNE 2014-2024, à luz das conclusões dessa pesquisa. Por agora, quedar-me-ei pela medida de toda...

Vassouras, 26 de outubro de 2043

E foi chegando o tempo de reunir, para preparar mais um Plano Nacional de Educação. Do fundo do baú das velharias resgatei uns amarlecidos papeís, mas ainda legíveis. Entre eles,  uma “notícia da edição impressa” datada de 25 de julho de 2014. A parangona não deixava dúvidas: “Pacheco vê boas intenções, mas critica PNE”: “Uma educação do século XXI. É isso o que prega o professor e mestre português José Pacheco, que esteve nesta quinta-feira em Porto Alegre, para ministrar a palestra “A educação integral e seus desafios” (…) Em entrevista ao Jornal do Comércio, falou sobre o Plano Nacional de Educação, sancionado no dia 26 de junho pela presidente Dilma Rousseff.  Pacheco vê o documento, que estabelece que até 2024 metade das escolas públicas do País terão turno integral, como um passo importante, mas que não contribuirá para uma verdadeira mudança da educação brasileira. A escola de tempo integral pode ser um degrau para chegar ao que eu chamo de educação integral, algo além ...

Bom Retiro, 25 de outubro de 2043

Suspendi um improvável diálogo, para não alimentar animosidade. Nenhuma amizade deveria ser abalada por diferentes (ainda que estranhas) atitudes. E a atitude da professora de Chase era admirável, embora em quase nada contribuísse para operar mudança. O “exemplo” dessa professora, como o de milhares de professores, iria morrer com elas.  A professora de Chase descrevera uma prática. Uma virtude pouco comum. A dos docentes não escrevia, não registrava prodigiosos exercícios didáticos. Um vasto património era ignorado, porque não saía do emparedamento em sala de aula.  Aqueles que tinham conhecimento de “novidades” visitavam-nas e usavam-nas para enfeitar teses de doutoramento. Teses que dormitavam nos armários das universidades, até que mais um candidato a doutor as “acordasse” e as citasse, talvez na intenção de fazer a “quadratura do círculo” da educação. Distraídos andariam aqueles que, nos idos de vinte e três, tomaram como “novidade” aquilo que em Chase se fazia. Ficai sab...

Morro do Estado, 24 de outubro de 2043

Por alguns dias do outubro de há vinte anos, mantive contato epistolar com alguém que eu muito estimava, comentando e formulando perguntas jamais respondidas.  Dizia ao meu querido amigo, que com ele concordava – o depoimento de Chase era extraordinário –, mas discordando do seu entusiasmo.  Parece que a velhice nos devolve alguma serenidade. Serenamente, pedia que me fossem dadas razões para a manutenção de um sistema obsoleto e iníquo, aquele que tinha por dispositivo central a sala de aula de… Chase. Já estava saturado de paliativos assimilados pelo “sistema”, digeridos e servidos como se de inovação se tratasse.  À distância de duas décadas, já consigo comentar sem quase deixar transparecer a irritação, apenas com resquícios de indignação. Naquele tempo, eu manifestava perplexidade perante o obsceno silêncio dos meus companheiros das ciências da educação. Não conseguia digerir omissões, discurso de acariciamento do ego dos professores, nem processos de naturalização –...

Ipê, 23 de outubro de 2043

Pela grande amizade que nutria por um bom amigo, eu hesitava entre agir como “Advogado do Diabo” (a Vovó Ludi não permitia que o fosse), ou ser o Grilinho do Pinóquio. Fosse como fosse, não me omitia, não me quedava neutral face ao teor daquilo que suscitou um “Uau!” desse amigo: “A professora de Chase está à procura de crianças solitárias. Ela está à procura de crianças que têm dificuldades para se conectar com outras crianças. Ela está a identificar os pequenos que estão a cair nas fendas da vida social da turma. Ela está descobrindo que dons estão passando despercebidos pelos seus pares. E ela está a identificar quem está a sofrer bullying e quem está a fazer o bullying.” Cadê a novidade? Porquê um “Uau!”, se todas as escolas deveriam ser espaços produtores de culturas singulares, mas também espaços de múltiplas interações, cooperação, partilha, comunicação, algo impossível em sala de aula.  Nos idos de vinte as escolas eram, quase sempre, espaços de solidão. E a solidão dos pro...

Sapopemba, 22 de outubro de 2043

Nos jornais, na televisão, na Internet, repercutia a infausta notícia:  “Ataque em escola de Sapopemba deixa aluna morta. Outras duas estudantes foram baleadas.” O jovem agressor só feriu meninas. Por acaso? O seu advogado disse que “o adolescente abriu fogo, porque sofria homofobia. Investigações indicam que o adolescente era alvo de agressões de outros alunos e que se usou arma do pai, para se vingar “Uma câmera de segurança registrou o momento em que ele entra em uma sala cheia de alunos e atira. Giovanna Bezerra, de 17 morreu com um tiro na cabeça. O agressor se entregou à polícia. Jéssica Mattos, mãe de uma estudante da escola, contou que adolescente era constantemente alvo de humilhações e agressões: “Ele era alvo de bullying.”. Um vídeo gravado dentro de uma sala de aula mostra o adolescente sendo agredido por duas meninas. Ele leva vários tapas no rosto e puxões de cabelo e revida as agressões, puxando as meninas pelos cabelos e as empurrando.  O secretário da Educação...

São Paulo, 21 de outubro de 2043

Um vídeo “viralizava” nas redes sociais de outubro de há vinte anos. Nele, um jovenzinho armado de pistola disparava contra a cabeça de uma menina, matando-a. Outros jovens corriam, buscando refúgio. A trágica situação já se tornara rotina de voyeurs. E, por que estarei eu, queridos netos, a evocar tão infausto acontecimento? A resposta é simples. Há vinte anos, atribuía-se aos autores dos atentados a origem de tresloucados hábitos. Tinham sido objeto de bullying e se vingavam. Sofriam de perturbações mentais. Padeciam de “psicoticismo”. Revoltavam-se por terem reprovado… Um senhor chamado Eysenck (norte-americano, como é bom de ver) concebeu uma teoria baseada na fisiologia e na genética. Embora fosse behaviorista, afirmava que as diferenças de personalidade resultavam de uma herança genética. Eysenck acreditava que altos níveis de “psicoticismo” – padrão de personalidade tipificado por agressividade e hostilidade interpessoal – estavam ligados ao aumento de psicose e esquizofreni...