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Mostrando postagens de novembro, 2023

Tijuco Preto, 30 de novembro de 2043

E deste modo o amigo Nóvoa prosseguia a sua conferência de 2006: “Nos últimos vinte anos, a generalização de uma educação básica de nove anos pode ser contada como uma história de sucesso, como uma “herança” de que nos podemos orgulhar. Mas, recentemente, descobrimos a reduzida percentagem de jovens que terminam o 12.º ano de escolaridade. Novos indicadores estatísticos, produzidos pela OCDE e pela União Europeia, deixam-nos inquietos e preocupados.  Quero chamar a atenção para a profunda insatisfação que se instalou na sociedade portuguesa no que se refere aos índices de insucesso e de abandono escolar, ou à saída prematura do sistema educativo sem qualquer qualificação. Esta insatisfação “quantitativa” desdobra-se numa outra, “qualitativa”, relacionada com os fracos resultados escolares dos alunos. Tanto os indicadores quantitativos, como os qualitativos explicavam-nos, com a força dos números, que continuávamos no mesmo lugar de sempre.  Será que não houve melhorias? Claro ...

Aterro do Flamengo, 29 de novembro de 2043

Felizmente, já lá vai o tempo da incoerência comentado por Niemeyer. Um tempo em que muitos amigos e muitas amigas aplicavam a freriana “receita” – usavam de amor e de coragem. Outros havia que nem por isso… E eu chegava a duvidar da amorosidade de muitos dos educadores que dela se reclamavam. Quanto à coragem, estávamos falados. Enquanto os primeiros sofriam as agruras do chão de escola e pagavam com isolamento a ousadia de cumprir Freire, freirianos não-praticantes exibiam nos palcos de congressos uma amorosidade delicodoce e sepultavam a coragem em inúteis teses, que apodreciam nos arquivos das universidades. O meu amigo Paulo era exemplo de amorosa e corajosa desocultação da incoerência de órgãos de administração e de gestão e era, por isso, votado ao ostracismo: “A escola na qual fui estudante, a quem dei parte dos anos mais provectos da minha vida, para quem trabalhei, de forma graciosa, durante 10 anos e para quem, também, elaborei guiões, a troco de nada, decidiu, através de qu...

Matinhos, 28 de novembro de 2043

Reagindo ao “puxão de orelha”, que destes ao vosso avô, e tentando redimir-me de velhos pecados, fui remexer no baú das velharias. De lá saíram registros de prodígios. O primeiro provindo de uma mensagem recebida do amigo Valdo:  “No segundo semestre de 2014, dois avós se encontraram para falar da vida, de desafios e de vivências educacionais. Sentados no chão do Museu do Brinquedo do Instituto Libertad, passaram horas brincando, feito crianças, falando dos netos, contando histórias e tecendo utopias.  O tempo que contava era só o tempo de brincar e de sentir as identidades, para além das idades. Após o longo tempo não controlado, decidiram que aquela alegria ali sentida, de avós e sonhadores de outros mundos educacionais, deveria ser compartilhada com mais amigos, que também se identificavam com o viver amoroso, fraternal e desafiador dos campos educacionais emancipatórios.  Ali nascia a UniProsa: a universidade que versa a prosa. A prosa que humaniza e dá sentido ao viv...

Tijuca, 27 de novembro de 2043

Queridos netos, achastes “exagerada”, “virulenta” a crítica lavrada na cartinha de ontem. Carinhosamente, dissestes ser o vosso avô um “velhinho insuportável”. Pois ficai sabendo que não “exagerei”, que pequei por defeito. E, hoje, apetece-me ser ainda mais insuportável.  Há vinte ou trinta anos, havia tabus e interditos, que ninguém ousava interpelar. Quando, nos idos de oitenta, o vosso avô se lançou na escrita de uma dissertação, desocultou alguns “dogmatismos”, que sustentavam uma precária formação de professores.   Acompanhei o percurso académico de muitos jovens candidatos a professor. Todos passaram por licenciaturas em química, filosofia, engenharia, matemática e outras disciplinas. No final dos cursos, eram exímios no domínio da “matéria a lecionar”, mas as ciências da educação eram para eles ciências ocultas.  Em Portugal, chamavam-lhes “setores”. Na hierarquia académica, ocupavam o patamar de licenciado. Não eram doutorados, mas exigiam que os seus alunos ...

Rio do Ouro, 26 de novembro de 2043

Aquele “dejá vu” formativo de vinte e três nos mostrava que ainda não chegara um tempo propício à reflexão fecunda.  Tal como nos idos de setenta, no tempo em que eu ainda acreditava poder aprender algo nos cursos que, então, o ministério disponibilizava. Algo bizarro acontecia. Os formadores desciam da universidade (ou subiam?) ao submundo do ensino básico. Com o apoio de retroprojetor (não havia computadores), projetavam “acetatos” com as mesmas citações, que, na década de vinte, voltaríamos a ler no power point das palestras e formações. Nos idos de vinte (deste século!), ainda não ficara para trás um tempo de congressos feitos de saliva e power point. Entre o uso do retroprojetor e o do computador, eu assistira a monótonas ou espetaculares palestras, nas quais os palestrantes citavam teóricos, reciclando lengalengas do discurso das ciências da educação.  Conheci dadores de aula, que não conseguindo fazer, na prática, aquilo que a teoria recomendava, desistiram do chão de e...

Itaipu, 25 de novembro de 2043

Nos idos de vinte e dois, recordo-me de o meu amigo (e sábio) Isaac Roitman ter lembrado aos seus conterrâneos que, no dia 21 de abril, a sua “querida UnB” completaria 60 anos de existência. Percorramos uma “linha do tempo”. No quinquagésimo ano de vida da universidade, tinham sido comemoradas “conquistas, identificando os fracassos e as omissões” . E a “Comissão UnB.Futuro” surgiu, para pensar a universidade de outro meio século.  Na década de cinquenta, acadêmicos sentiram “necessidade de uma inflexão no ensino universitário brasileiro” . Mas, o que se pretendia fosse inovação, sofreu o desgaste registrado no livro “ A Universidade Interrompida 1964-1965” .  Nos idos de sessenta, no seu depoimento na Câmara dos Deputados, Agostinho da Silva defendeu um modelo da universidade, que enfrentasse os desafios dos tempos presentes (estávamos na década de sessenta) e futuros: “A Universidade atual, que vem da Universidade medieval, é uma Universidade que se alicerça sobre a id...

Marina da Glória, 24 de novembro de 2043

Voltava do Rio com uma estranha sensação de “dejá vú” e, num cantinho da Internet, me aguardava um textinho do amigo Matias com o título “ O supermercado, a escola e a guerra civil”. “Para evitar o desespero e criar novos entusiasmos, para libertar as iniciativas e suscitar a criatividade, acreditamos que é hoje mais razoável decidir mudar de viatura do que esgotarmo-nos a consertar um motor definitivamente desconsertado.  A escola transformou-se num supermercado onde os adultos distribuem conhecimentos que apenas servem para ter sucesso na escola.” Esta é a tese de Philippe Meirieu e de George Marc, desenvolvida na obra “L’école ou la guerre civile”. Segundo os autores, as escolas são hoje máquinas, que tanto integram como excluem, e os professores que escolhem a profissão não têm condições para responder positivamente à imensidão de pedidos e mandatos sociais, trabalhando no mesmo modelo (no mesmo molde) escolar. Para evitar o stress e a depressão profissionais, a fuga da escola ...

Lagoa de Piratininga, 23 de novembro de 2043

Dizia-se que o Brasil era o país com mais leis. Havia quem dissesse serem elas mais de milhão. O país da Educação não era pobre em regulamentação. Infelizmente, a regulamentação da lei-mãe manifestava caráter técnico-instrumental, continha laivos de uma racionalidade burocrática, instrucionista. Na prática e em contradição com o discurso, rejeitava-se a ideia de que as escolas poderiam constituir-se em espaços coletivos de criação de novas realidades. Por força de atavismos e vícios, todas as escolas deveriam ser “iguais à face da lei”. E até onde nos conduziria essa pretensa “igualdade”? Na busca de “resultados”, escolas particulares antecipavam as férias, “para que os professores pudessem ser preparados para as aulas online”. Empresas de ensinagem praticavam um marketing agressivo, explorando a fragilidade do sistema público de ensino, tirando partido das dificuldades sentidas pelas famílias, prometendo soluções mágicas. Inclusive, ensinando as crianças a… brincar. O asqueroso anúnci...

Inoã, 22 de novembro de 2043

Como já vos contei, há alguns anos, uma amiga quis conhecer por dentro uma “utopia” que, em equipa, íamos ajudando a construir. Mais tarde, conhecedora da perturbação que eu semeava por tudo o que era colóquio ou congresso, lançou-me um desafio: “Por que não vais desassossegar espíritos para uma instituição de formação inicial de professores?”  Acabei por aceder ao repto. Confesso tê-lo feito por curiosidade, apenas “à experiência” e desconfiado de que não iria manter-me por lá por muito tempo. Bem me tramei. Tomei-lhe o gosto e pude dar largas à minha irremediável tendência de (fraternalmente) provocar.  A primeira surpresa foi a de constatar o drama de jovens almas, naquele engano de alma ledo e cego que os primeiros dias de docência não deixam durar muito, aderindo, entusiasticamente, às ideias do Freinet, do Dewey, do Rogers, do Freire, para que não fossem apenas matéria a decorar para os exames, nem fizessem desses egrégios autores múmias dissecadas em dissertações. Em su...

Rio de Janeiro, 21 de novembro de 2043

Perante o entusiasmo dos meus jovens alunos do curso de formação inicial de professores, pedia que, às primeiras contrariedades no exercício da profissão, não transformassem o idealismo em pragmatismo e o pragmatismo em cinismo. Dizia-lhes que, mal pressentissem que poderiam vir a refugiar-se no “dar aulas e manter a disciplina”, mudassem logo de profissão. Só desse modo preservariam a sua sanidade mental e a das crianças e jovens que lhes coubessem em sorte educar.  Aqueles a quem os acasos da vida conferiram coerência defrontaram obstáculos e reveses, que as escolas não são bem aquilo que vem nos livros.  A partir de meados dos anos noventa, passei a receber telefonemas, cartas e mensagens por uma Internet, que nesse tempo nascia. Quase todas as missivas me falavam dos seus primeiros dias como professores. Outras mensagens eram restos de uma esperança dissolvida no ácido da vida real. Havia algumas em que pediam conselho, davam notícia de sucessos e, quase sempre, de insuces...