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Mostrando postagens de dezembro, 2023

Caraíva, 31 de dezembro de 2043

Netos queridos, com 2043 quase a terminar, venho falar-vos, não de um fim, mas de um início de ano: o do ano letivo de 1976. Há quase setenta anos, partimos para a reinvenção da Escola. Escrevi “partimos”, porque, como sabeis, um projeto educacional é um ato coletivo. Na Ponte não partimos de problemas, mas daquilo que nós éramos, para aquilo que queríamos ser, porque nós éramos… o problema.  Bem cedo compreendemos que, se reelaborássemos a nossa cultura pessoal e profissional, também estaria em nós a solução, porque um professor não ensina aquilo que diz; transmite aquilo que é. Para sabermos o que éramos, realizamos um exercício simples: escrevemos num papel os dez valores que orientavam as nossas vidas.  Três valores surgiram em todos os papéis: liberdade, solidariedade, responsabilidade. Porém, quando quisemos operacionalizar o valor “liberdade”, deparámo-nos com um obstáculo: não existe uma ciência da liberdade. Ela poderia ser ensinada, mas esse ensino não passaria por u...

São Paulo, 30 de dezembro de 2043

Antes que o ano de quarenta e três termine, quero falar-vos de educadoras como a Claudia e a Edilene, coautoras de projetos como o Âncora e a Escola Aberta, seres humanos devotados à causa das crianças.  Aquilo que mais as carateriza é a competência profissional, a bondade e o desapego. Delas vos falarei nesta cartinha, sem precisar de citar, de novo, os seus nomes, pois elas são aquilo que aqui escrevo. Escola é construção social, currículo é construção histórica e reflete ideologia. Até há pouco tempo e excetuando algumas esparsas experiências, a educação escolar era entendida apenas como treinamento no domínio cognitivo, sendo ostracizadas as dimensões do afeto, da emoção e até mesmo da espiritualidade. Ignorava-se que currículo não é apenas conteúdo, mas também múltiplas experiências proporcionadas ao aluno. Adotemos o princípio kantiano, que nos diz que o objetivo principal da educação é o de desenvolver em cada indivíduo toda a perfeição de que ele seja capaz. Apresenta-se c...

Lagoa das Amendoeiras, 29 de dezembro de 2043

Netos queridos, quando 2043 se aproxima do final, quero oferecer-vos estórias e poesia, manifestar gratidão pelo tempo que possais ter dispensado à leitura destas cartinhas. Também e em particular, a uma comunidade e a uma pessoa, que, nos idos de vinte, acreditou que seria possível transformar o dizer em fazer, colocar a poesia em ato.   Comecemos pela poesia, que dedico a essa pessoa. Os percalços e alegrias que vivemos juntos fizeram-me lembrar de pedacinhos de um poema do Pablo, que eu lia e relia nas passagens de ano de há mais de setenta anos: “Somente quero cinco coisas, cinco raízes preferidas. Uma é o amor sem fim. A segunda é ver o outono. Não posso ser sem que as folhas voem e voltem à terra. O terceiro é o grave inverno, a chuva que amei, a carícia de fogo no frio silvestre. Em quarto lugar o verão redondo como uma melancia. A quinta coisa são teus olhos, não quero dormir sem teus olhos, não quero ser sem que me olhes: eu mudo a primavera, para que me sigas olhando...

Boa Esperança, 28 de dezembro de 2043

O dealbar de 2024 foi tempo de reencontros e reinícios. De Portugal chegavam o Luís e a Filipa (destes amigos vos falarei, em breve). Outros amigos partiam do Brasil, para que, como dissera Agostinho, o Portugal da Educação desembarcasse em Portugal. Era um tempo de lembrar ausências e reencontros. Fui ao baú das velharias e de lá retirei uma crónica do amigo Rubem, que nos fala das ausências e reencontros do Natal de todos os dias: “Menino, lá em Minas, havia uma coisa, uma única coisa que eu invejava nos católicos: no Natal, eles armavam presépios e nós, protestantes, tínhamos árvores de Natal. Mas as árvores, por bonitas que fossem, não me comoviam como o presépio: uma cabaninha coberta de sapé, Maria, José, os pastores, ovelhas, vacas, burros, misturados com reis anjos e estrelas, numa mansa fraternidade, contemplando uma criancinha.  A contemplação de uma criancinha amansa o universo. Os católicos mais humildes tinham alegria em fazer os seus presépios. As pobres salas de vis...

Escola da Floresta, 27 de dezembro de 2043

O Dia de Natal já lá ia, mas alguns incansáveis construtores de Paz se mobilizavam nas redes sociais, preparando “um post especial” para uma live que aconteceria do 27 de dezembro de há vinte anos. Eu os lia e os admirava: “Sugiro colocar só equipe, no lugar de "equipe coordenadora”. E se tirarmos, também, a palavra "equipe"? E deixar só: “São os votos da Rede de Comunidades de Aprendizagem”? Equipe dá ideia de potência e pertencimento. Neste caso, creio que dá... Maravilha! Volta “equipe”. É espírito de mudança em equipe que gera a ação, a transformação. A ideia é renovar, e renovação é refletir ação, repensar o que vivemos. Vivemos em comunidade, onde quer que estejamos, por meio de nossos valores, princípios, acordos, que nos relacionam com todos os seres.  Os nossos votos de renovação que inova ação! E que o espírito natalino esteja em todos nós! Natal é espírito de ação, de transformação. Natal é renovar a Esperança.” Os educadores que assim se manifestavam sabiam q...

Centro Educacional Jabuti, 26 de dezembro de 2043

Recebi mensagem da minha amiga Lívia, logo após o Dia de Natal. Provando que não há longe, nem distância, me presenteava com uma mensagem de fecho de ano e de agradecimento:  “E quem diria que já estaríamos no Natal? Que esta data nos lembre o verdadeiro significado de estarmos juntos em nome do amor.  Hoje, te convidamos a agradecer e celebrar a vida, honrando todos aqueles que deixaram esse plano, num 2020 tão cheio de desafios.  Diante de todos os obstáculos aos quais fomos expostos, esse ano nos mostrou a importância do reaprender e nos ensinou que, juntos, podemos transformar o mundo.  Agradecemos sua caminhada ao nosso lado nessa grande missão de sermos agentes de transformação! Gratidão! Seguimos juntos, sempre, por um mundo melhor! Muita luz e um Feliz Natal!” Dizia-nos Biasutti que “a infância tem valor, não tanto como período de adestramento, mas como período em que se pode experimentar livremente aquela maravilhosa sensação de sermos nós próprios, que pred...

Cidade do Porto, 25 de dezembro de 2043

No meu Natal brasileiro, um Presépio mostrava um Menino Jesus negro em uma Amazônia devastada. Um bebê negro, filho de uma virgem negra, rodeado de querubins indígenas. Essa imagem me transportou para a “Antologia Poética” de um Miguel, que vivera em Leopoldina e que, assim, evocava o Natal português: “Nasce mais uma vez, Menino Deus!  Não faltes, que me faltas, neste Inverno gelado.  Nasce nu e sagrado, nasce e fica comigo, secretamente, até que eu, infiel, te denuncie aos Herodes do mundo Até que eu, incapaz de me calar, devasse os versos e destrua a paz, que agora sinto, só de te sonhar.” A memória de versos misturava à memória gustativa de arroz-doce e rabanadas a do aconchego da lareira da casa de Vila das Aves. Hoje, desfilam pelos meus olhos fechados memórias de avós, pais e mães, irmãos, de uma multidão de gente simples autora dos meus primeiros natais.  O meu “Natal dos Simples” aconteceu num dezembro dos inícios dos anos sessenta. Tenho um pressentimento de que ...

Nascentes de Luz, 24 de dezembro de 2043

Nunca agradeci o bastante por a minha amiga Andreia me ter levado até à “Nascentes de Luz”, um lugar onde o Natal acontece todos os dias. Senti-me em família, numa época em que, voluntariamente exilado no Sul, toda a minha família estava no Norte.  Pelo WhatsApp, acompanhava os preparativos da “Consoada”. O Natal de vinte e três todos reuniria numa “Festa da Família”, na casa da Luísa. A dez mil quilómetros de distância, com eles conversei, nesse Natal brasileiro celebrado na casa da Mariana. Dias antes, recebera um texto da minha amiga Maria do Céu Roldão, retrato fiel dos natais do Norte e do Sul. Aqui vo-lo deixo, com votos de um Natal de Paz.  “O cowboy da meia-noite. O homem estava caído de lado, imóvel, no chão do centro comercial. A perna dobrada vestia uns jeans coçados. Nos pés uns ténis modestos. Em volta, uns quantos funcionários afadigavam-se relativamente – entre olhar com ar entendido e usar os telemóveis para pedir socorro.  Nós, os clientes apressados, det...

Caçapava do Sul, 23 de dezembro de 2043

Ontem falei-vos de autonomia. E a cartinha terminava com um exemplo da prática da solidariedade. Dela vos falarei na de hoje, expressa nas palavras do Mestre Morin:  “Sejamos irmãos porque estamos perdidos num pequeno planeta dos arredores de um sol suburbano de uma galáxia periférica de um mundo privado de centro.” Reflitamos sobre uma dura realidade: a quantidade de suicídios verificados neste nosso conturbado mundo equivale ao dobro do conjunto de mortos por guerra e fome. Quem se interroga sobre as causas de ambas as tragédias? Quem  reflete sobre a ausência de uma ética apoiada na bondade e no apoio mútuo?  Naquela idade em que começamos a sentir a necessidade de dar sentido à vida, é preciso que aconteça um feliz encontro com seres que ensinam que a verdadeira vida é um fraterno encontro. Em direto, a televisão transmitia um atropelamento, numa rua de São Paulo: um corpo no meio da rua e condutores desviando as suas viaturas daquele obstáculo, alguns quase esmagando...