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Mostrando postagens de janeiro, 2024

Berenice, 31 de janeiro de 2044

Calvino, de novo, a desocultar cidades feitas de ignominiosa injustiça: “Em vez de falar de Berenice, cidade injusta, que coroa com tríglifos ábacos métopes as engrenagens de suas máquinas de triturar carne (os funcionários responsáveis pela limpeza, quando levantam a cabeça acima dos balaústres e contemplam os átrios, as escadarias, os pronaus, sentem-se ainda mais enclausurados e baixos de estatura), eu deveria falar da Berenice oculta, a cidade dos justos em vez de representar as piscinas perfumadas das termas em cujas bordas se estendem os injustos de Berenice enquanto tecem as suas intrigas com redonda eloquência e observam com olhar dominador as carnes redondas das odaliscas que se banham, deveria falar de como os justos, sempre prudentes em evitar as delações dos sicofantas e as armadilhas dos janízaros”. Não era a primeira vez, nem seria a última, que um poder público prepotente praticava injustiças. A “funcionarização” dos professores era causa de vis afrontas praticadas por d...

Doroteia, 30 de janeiro de 2044

“ Na cidade de Doroteia, o cameleiro que me conduziu até ali disse: “Cheguei aqui na minha juventude. Antes disso, não conhecia nada além do deserto e das trilhas das caravanas. Naquela manhã em Doroteia senti que não havia bem que não pudesse esperar da vida. Nos anos seguintes meus olhos voltaram a contemplar as extensões do deserto e as trilhas das caravanas; mas agora sei que esta é apenas uma das muitas estradas que naquela manhã se abriam para mim em Doroteia”. Partindo da releitura de Calvino, ofereço-vos um belo naco de prosa da Marguerite Yourcenar (“Les Eux Ouverts”), partilho aquilo que mão amiga me fez chegar.  "Condeno a ignorância que reina neste momento nas democracias e nos regimes totalitários. Essa ignorância é tão forte, muitas vezes tão total, que seria dito desejado pelo sistema, se não pelo regime. Muitas vezes me perguntei como poderia ser a educação de uma criança. Acho que seria necessário estudos básicos, muito simples, onde a criança aprendesse que exist...

Isidora, 29 de janeiro de 2044

“O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos, finalmente, chega a Isidora, cidade onde se fabricam à perfeição binóculos e violinos. Ele pensava em todas essas coisas quando desejava uma cidade. Isidora, portanto, é a cidade de seus sonhos: com uma diferença. A cidade sonhada o possuía jovem; em Isidora, chega em idade avançada. Na praça, há o murinho dos velhos que vêem a juventude passar; ele está sentado ao lado deles. Os desejos agora são recordações.” A descrição que Ítalo Calvino faz da cidade de Isidora me transporta a um tempo em que os meus desejos eram já recordações. O tempo do janeiro de vinte e quatro, quando a Maria Emília lamentava a perda de uma extraordinária mulher e educadora: “ Morreu a nossa querida Ana Maria!  Levei 24 horas a digerir. Se alguém não devia, não podia morrer era a Tana. Aberta e generosa, sempre disponível para os outros para as novas ideias e novas práticas, que punha em prática a sua visão de uma pedagogia ativa e que promoveu pion...

Vitória da Conquista, 28 de janeiro de 2044

Abalamos de Belo Horizonte para Vitória da Conquista, ao encontro do amigo António. Na bagagem, a expectativa de ajudar a compor uma ARCA do Sul da Bahia e alguns textos dispersos recuperados do caos em que o meu velho computador estava imerso.  Eram apontamentos marginais de páginas relidas, há mais de meio século, misturados com pedaços de mensagens da Internet de há vinte anos. Sem preocupação de uma sequência lógica, aqui vo-los deixo. O primeiro me chegou pelos idos de oitenta, oferta do amigo Miguel: “A escola é o lugar onde deveríamos aprender a ser nós próprios e a respeitar todos os outros. Estar na escola, viver a escola deverá ser o caminho para chegar a conhecer, a amar e a desenvolver a nossa pessoa e, ao mesmo tempo, a ter em conta que há outras que merecem o nosso respeito, a nossa ajuda e o nosso afeto. Quando falo de diversidade, não me refiro só aos alunos, há diferenças que devemos respeitar nos professores e em todos os que trabalham na escola.”  E continua...

Betim, 27 de janeiro de 2044

Quando criança, eu inquiria o porquê das coisas e escutava a inevitável resposta (quando havia resposta…):  “Um dia, hás de perceber por que razão aprendes aquilo que eu te estou a ensinar.” Septuagenário, continuava sem saber quando chegaria esse dia, e sem perceber o porquê de muitas coisas com as quais “me prepararam para a vida”. Décadas a fio, resisti à tentação de desistir de perguntar, insistindo na busca de “explicação” para a monstruosa manutenção do modelo prussiano de escola. Percorri meio mundo, até que vencido pelo cansaço, decidi suspender a andarilhagem, a retirar-me de cena, sem que tivesse encontrado “respostas” para as perguntas que fazia, pois ninguém respondia. Eis senão quando, em 2021, numa viagem a Portugal, incidentes críticos se sucederam em catadupa. Várias vezes – mais concretamente, vinte e três vezes – escutei a mesma pergunta: “Professor, lembra-se de mim?” Não “lembrava”. Quem a mim se dirigia desse modo estava casa dos cinquenta anos de idade, e eu j...

Belo Horizonte, 26 de janeiro de 2044

Há vinte anos, por esta altura, estava indo para mais um lugar onde havia morado e trabalhado, gratuitamente. Um homem rico, dono de uma escola, me havia pedido para dela “fazer uma Escola da Ponte”. Naquele tempo, eram muitas as escolas que, para atrair matrículas, propagandeavam terem adotado “o Método da Ponte”, como se a Ponte fosse “um método”. Outras tentavam usar o vosso avô como aquilo que os brasileiros designavam de “garoto propaganda”. Certo é que, enquanto o vosso avô, gratuitamente, ajudava a melhorar a vida de professores e crianças, muita gente fazia fortuna palestrando sobre a Escola da Ponte.  A imoralidade grassava num sistema de ensinagem obsoleto. Para aqueles que se aproveitavam de trabalho alheio, a ética era coisa de papalvo. Frequentes eram as pequenas traições e abusos de confiança. Não foi o caso da Lilian. Conheci a Lilian na escola do homem rico. Fora contratada pelo dono da escola, para com ele colaborar na destruição de um projeto que, com a Claudia, e...

Diomira, 25 de janeiro de 2044

Queridos netos, aprecio o vosso interesse em conhecer questiúnculas passadas do reino da educação. E, porque me perguntastes o que seriam as sete pragas educacionais, delas vos falarei. Na cartinha de hoje, da praga da Normose Educacional. Como sabeis, um artigo publicado na Folha de São Paulo deu origem ao Movimento dos RC, ao Terceiro Manifesto pela Educação, à CONANE e outros derivados. O artigo dava pelo título de “Escolas Invisíveis”. Mas, decerto, não sabereis onde fui buscar inspiração para redigir esse artigo. Uma dúzia de anos antes, tinha lido um livro do Ítalo Calvino: “As Cidades Invisíveis”. E, ao longo de mais de cinquenta anos, estabeleci um secreto paralelo entre as cidades descrita por Marco Polo e as cidades, lugares, projetos por onde gastei toda uma vida de educador.  Agora, que devo estar prestes a partir, vos revelo algo que guardei no baú das velharias e que desejaria fosse livro de publicação póstuma: “Estórias que Nunca Hei-de Contar”. Falar-vos-ei apenas d...

Itaporanga, 24 de janeiro de 2044

Já escrevi e apaguei esta cartinha, várias vezes. Não “encontro o fia à meada” de contar como terminou o encontro de Caraíva, os seus últimos e desagradáveis momentos. Torna-se difícil traduzir a tristeza, que me invadiu, naquele fim de tarde. à distância de vinte anos. Daí que tente substituir o sentimento de deceção por uma descrição Uma artista plástica e “professora oficineira” descreveu o seu regresso a Caraíva, denunciando dificuldades engendradas por políticos. Agradeceu a realização da ARCA: “Vocês não têm noção do que vocês são capazes! “Irei pensar um piloto que semeie sementinhas de educação ambiental.” Aproveitando a “deixa”, a Flávia desabafou: “Muitos colegas da minha escola já tomam remédio para dormir. E eu espero não desanimar. Não julgo os meus pares, porque vejo o que eles passam. O chão de escola pública não é fácil. Mas, não podemos desanimar, a Escola Pública tem de sobreviver.” Em singelas e emocionadas palavras, enquanto lamentava o precário estado a que a rede ...

Icaraí, 23 de janeiro de 2044

  Netos queridos, pedistes que vos explicasse a diferença entre escola da rede pública e Escola Pública. Vos satisfaço a curiosidade, ao longo de algumas cartinhas, começando pela “Nota de Apresentação” de um livro que teve por título “Defender a Escola Pública”. Ei-lo: “O Projeto Educativo que vem sendo construído por um coletivo de professores na Escola da Ponte, em Vila das Aves, constitui um sinal de esperança para todos os que acreditam e defendem a possibilidade de construir uma Escola Pública aberta a todos os públicos, baseada nos valores da democracia, da cidadania e da justiça, que proporciona a todos os alunos uma experiência bem-sucedida de aprendizagem e de construção pessoal.  A Escola da Ponte representa uma singularidade na qual é possível vislumbrar a totalidade sistémica dos problemas que se colocam ao nosso sistema escolar, bem como algumas hipóteses sólidas de possíveis soluções que contrariam o nosso proverbial ceticismo.  Referimo-nos aos problemas d...