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Mostrando postagens de setembro, 2023

Foros de Vale Figueira, 30 de setembro de 2043

No interior mais interior do Portugal, assumi o compromisso de ajudar a fazer comunidades. No périplo do mês de setembro de vinte e três, visitei o meu amigo Alfredo. Falou-me de sonhos, mostrou-me mais um espaço, do que viria a ser a comunidade do Freixo do Meio. Eu seguia os passos de antigos andarilhos da educação. Como alguém, que, em 1912, escrevia: “Na minha última digressão à minha terra, observei algumas coisas que bastante agradaram ao meu coração. O que mais me encheu de júbilo foi o interesse que notei pela instrução. É preciso instruir e educar, para que o homem saiba o que quer ser, saiba ser livre e saiba ser cidadão”. Sábias e percursoras palavras, mais adiante tornadas realidade. Porém, por essa altura, em todas as terras, havia placas informativas com as inscrições “Escola Primária” e “Escola eb2,3”. Esses modelos de construções escolares tinham sido substituídos por novos velhos modelos de edifícios feitos de salas de aula. Na verdade, nada havia mudado. Digitalizada...

Lisboa, 29 de setembro de 2043

Estava por Lisboa, nesse dia de há vinte anos, revivendo velhas mágoas e escassas alegrias. O meu coração estava no Sul da Vovó Ludi, a saudade me abatia e eis que deparo com algo, que doeu ainda mais fundo, na alma de um desbravador de sonhos. Visitei um lugar “sagrado” para mim. E o Hernâni compreendeu o quanto me custava manter o diálogo com dadores de aula. Já vos repeti o quanto me custou reconhecer o engano de alma ledo e cego do início do exercício da profissão de professor. Nessa altura, eu sabia tudo o que precisava saber para “dar aula” a turmas do “ensino secundário”. Eu sabia tudo, ou quase tudo, de eletrotecnia, mas não sabia ser professor. Eu sabia “dar aula” e as dava de modo magistral. Ao ponto de inspetores recomendarem aos estagiários o assistir à minhas aulas.  Eu via os colegas do “secundário”, tranquilamente, “dando aula”, mas eu sentia o incómodo de professor primário que, também, dava aula, mas adquirindo consciência de que não conseguia ensinar nem metade do...

Moita, 28 de setembro de 2043

Ontem, descrevi-vos algumas das impressões colhidas num encontro que viria a marcar o rumo do projeto das Novas Construções Sociais. Após o encontro das Caldas da Rainha, o WhatsApp fervilhava de animadoras mensagens: “Conseguiu-se o primeiro objetivo. Agora falta concretizar o tal grupo de trabalho” “Encontrei à saída uma presidente super motivada. Peço desculpa não me ter despedido, mas tive de entrar na aula... menos à antiga, mas ainda num formato semelhante. Beijinhos.” “Repetindo o que disse o Secretário de Estado António Leite: “Não se deixem amedrontar pela linguagem técnica e burocrática. O ministério está disponível para receber as vossas propostas. Se o Professor Zé tivesse cumprido tudo, nunca teria feito nada.”  “Saímos com uma porta aberta! Vamos aproveitar! Voltaremos a ver-nos em novembro. Muito muito obrigada a todos pelo trabalho, dedicação e iniciativa. Haverá mais! Sementes lançadas. Vamos em frente.” Era forte o sentimento de que havia chegado o momento de entr...

Caldas da Rainha, 27 de setembro de 2043

Neste mesmo dia de há 20 anos, abalei do Fundão na companhia do Hernâni e da Cátia, para ir ao encontro de educadores amigos, nas Caldas da Rainha – o João, a Carla, a Dora, o Luís, a Rita, a Adélia, a Andreia e outros extraordinários seres humanos. Tive, também, ensejo de reencontrar um velho companheiro de andanças sindicais, naquele tempo investido nas funções de Secretário de Estado da Educação.  Na “Casa Antero”, um almoço acompanhado de um tinto de excelente cepa, nos preparou para um evento que viria a marcar o rumo do projeto de humanização iniciado por pais e mães conscientes da necessidade de intervir na Escola, para que a Educação assegurada por uma efetiva Escola Pública fizesse dos seus filhos seres mais sábios e pessoas mais felizes. Constituiu agradável surpresa a presença da senhora vereadora da educação e dos diretores dos agrupamentos do município. Num largo painel, se sucederam intervenções de natureza diversa. Escutei o discurso escutado, há vinte, trinta, quare...

Pampilhosa da Serra, 26 de setembro de 2043

Fora de Portugal há cerca de 20 anos, ao meu país voltei, amiúde, a convite de educadores, pais de alunos, autarcas empresários, diretores. Por toda a parte, unia, reunia, propunha diálogo a professores renitentes ou desistentes.  Só não conseguia demover dadores de aula do seu absurdo labor.  Desisti de porfiar no insano apelo a uma decisão ética, mas não desisti de um incansável peregrinar, à procura de professores vivos. Abalei de Alentejo profundo para terras da Beira Interior.  Boff dizia que a crise que nos afetava não era uma mera crise cíclica e que uma nova ordem mundial se mostrava necessária, um novo modo de habitar a Terra.  Para “um novo habitar a Terra”, preciso seria uma nova Educação, como aquela que o Professor Patrício deixara em Campo Maior. Em terras do Atlântico Sul, o Mestre Pedro também não desistia da denúncia das “cortinas de fumaça, para encobrir uma política educacional incrivelmente perversa”: “Aprendizagem quase não existe, não levamos qu...

Campo Maior, 25 de setembro de 2043

Nos idos de oitenta, fui com as crianças da Ponte até Campo Maior, visitar a fábrica de Cafés Delta. Lá voltei, no setembro de 2023, a convite do Luís Sebastião, do Centro Educativo Alice Nabeiro (da Fundação Coração Delta) e de um grupo de antigos alunos do Professor Manuel Ferreira Patrício. Como escreveu o Luís: “Com o propósito de algum modo, usar o seu pensamento e a sua obra como pretexto para repensar a educação numa perspetiva de melhoria e mudança. Uma das intenções deste grupo é o de realizar, sempre em setembro, mês em que o Professor Patrício nasceu e morreu, e sempre em Campo Maior, uma conferência sobre educação feita por um "autor", no sentido de alguém com pensamento próprio e obra feita.” No ano anterior, a primeira conferência fora proferida pelo amigo Nóvoa, a propósito da publicação do relatório da UNESCO de que tinha sido redator.  O Luís escreveu no email-convite que o bom povo de Campo Maior “gostaria muito de que a segunda conferência fosse proferida p...

Elvas, 24 de setembro de 2043

A minha amiga Regina fez lembrar que, há setenta anos, o Brasil e o mundo perderam Josué de Castro. Nascido no setembro de 1908, viria a ser sepultado em Paris, no setembro de 1973. Pelo meio ficara uma vida ao serviço dos deserdados. Em “ Por um mundo sem fome”, Francisco Menezes assim o descreve:  “ O menino mulato cresceu bem próximo aos  mangues , na região de  mocambos , habitada por retirantes e caranguejos.” Ficaram célebres os seus trabalhos sobre o problema da fome no mundo e as suas participações em organismos internacionais. Partindo de sua experiência pessoal no  Nordeste brasileiro , publicou obras de indispensável leitura: “ Geografia da fome ”, “ Geopolítica da fome” , “ Sete palmos de terra e um caixão”  e “ Homens e caranguejos” .  Nos idos de vinte, três subsistemas sociais careciam de mudança: o subsistema político, que demonstrara total inépcia na gestão de crises humanitárias; o econômico, que não mais poderia manter-se ...

Bocaina de Minas, 23 de setembro de 2043

Apesar da Escola, havia seres humanos que conseguiam aprender a ser, no acaso (ou sincronicidade?) do encontro com professores humanizadores. Ser professor humanizador era profissão de risco. Para que conste, o vosso avô quase foi assassinado, só por ter modificado um pouco a sua prática. No tempo em que realizávamos os “encontros de sábado”, projetos como o de Mirantão eram alvo de calúnias. E, de um dia para outro, qualquer burocrata ou politiqueiro poderia pôr ponto final na inovação. Contrariamente ao que palestrantes teoricistas propalavam, as escolas não eram autónomas. Se o diretor tinha dever de obediência hierárquica, cadê a autonomia da escola? Um dos primeiros passos da criação de uma nova construção social seria o da reivindicação de autonomia. A lei o sugeria. A dignidade profissional dos professores a requeria. Foram elaborados regimentos (regulamentos, em Portugal) internos. E minutas de termos de autonomia (contratos, em Portugal) foram entregues à direção, gestão e adm...

Mirantão, 22 de setembro de 2043

O meu saudoso amigo Rodrigues Brandão compôs “Haicais para receber a Primavera”, celebrando a chegada da Primavera da Educação, consciente de que ainda ia terminando um longo e pesaroso Inverno Educacional.  Era indisfarçável a podridão pedagógica acumulada, ao longo de séculos. O assédio moral e múltiplas ameaças eram sinais evidentes do desespero de áulicos e burocratas. Atento ao descalabro, o amigo Ademar denunciava os habituais disfarces e paliativos, metaforizava o fim de um obsoleto e pérfido sistema de ensinagem.   “Na madrugada do naufrágio do Titanic, o quinteto liderado por Wallace Hartley só parou de tocar trinta minutos antes de o luxuoso navio se afundar. Os músicos sabiam que da sua actuação dependia, em larga medida, o controlo do pânico dos passageiros. Um dos sobreviventes do naufrágio contou mais tarde aos jornais que ao mesmo tempo que as águas tumultuosas do oceano se insinuavam discretamente sobre os mais recônditos escaninhos do Titanic, preparando ...

Butantã, 21 de setembro de 2043

Quando me preparava para rabiscar mais uma missiva e remexia no baú das velharias em busca de boas memórias, encontrei um registo de um incidente crítico de que, amanhã, vos falarei. Esse incidente reforçou a necessidade de os projetos de mudança e inovação providenciarem efetiva autonomia – à partida, apenas pedagógica e administrativa – sem a qual raramente sobrevivem.  O “sistema” era astuto. Identificava projetos dissidentes e usava de autoritários processos, para os destruir. Era da natureza do “sistema” ser autoritário, e o Ademar o demonstra num prefácio escrito no final do século passado.  “A estória do Titanic é uma das mais poderosas metáforas sobre o sem sentido da escola contemporânea. Também ela se acredita invulnerável e insubmersível; também ela, pressentindo o perigo, acelera o passo em direção ao abismo; também ela navega com passageiros a mais e salva-vidas a menos; também ela parece ter sacrificado a segurança da viagem à ilusão efémera do espetáculo; também...