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Mostrando postagens de fevereiro, 2024

Niterói, 29 de fevereiro de 2044

Tal como há vinte anos, 2044 é ano bissexto. As seis horas acumuladas dos últimos quatro anos “nos dão” mais um dia de vida. Aproveito esta manhã para tentar completar algumas divagações “autonómicas” dos anos setenta, por me ter apercebido de que, na Ponte, na prática, quase nada tínhamos inventado. Nesse tempo, todos os tratados para salvar a Educação já tinham sido escritos. Só faltava salvar a Educação. E a Educação não poderia ser salva em… sala de aula.  Começamos por centrar o processo de aprendizagem no aluno. Fomos os primeiros, passando duras penas. Depois, tomamos consciência de que o aluno não seria o centro, mas sujeito de aprendizagem. Não havia centro, mas relação e criação de vínculo, humanização do ato de aprender. no contexto de uma comunidade. Então, retomamos o projeto cuidando do professor. A intervenção do professor não era anulada, mas substituída por um sistema de mediações, que asseguravam a reciprocidade autonómica e eram utilizados dados da dinâmica de gr...

Maricá, 28 de fevereiro de 2044

Netos queridos, espero não ser maçador, voltando a conversar sobre a praga do teoricismo. No tempo em que não havíeis nascido, o Gagné (de quem já vos falei) afirmava que a questão mais importante no processo de ensinagem era a extensão do que poderia ser previamente determinado para o indivíduo que aprendia. Estava seguro de que não se poderia esperar que a pessoa que aprendesse, enquanto estava voltada para o próprio processo de aprendizagem, fosse capaz de julgar a eficácia das diretrizes de ensino traçadas pelo professor. Enfim! Não conseguindo sair dos limites epistemológicos do paradigma da instrução, Gagné afirmava duvidar de que uma sala de aula fosse o lugar em que se pudesse realizar a tarefa de determinar condições de aprendizagem para cada estudante em particular. Dizia ser “impossível”… em “sala de aula”. À revelia de Gagné, a Ponte centrava o processo de aprendizagem o aluno, libertava o professor para exercer um controlo individual e permanente, o que seria inviável em e...

Rio Bonito, 27 de fevereiro de 2044

O discurso da política educacional dos idos de vinte estava eivado de valores da modernidade, dos valores dominantes dos três períodos da trajetória da modernidade: a liberdade, a igualdade e a autonomia. Mas, tal como transparecia no discurso, o conceito de modernidade sacralizava valores e direitos, mas era inviabilizado a sua operacionalização – na prática. A essência do homem é, essencialmente, o conjunto de relações sociais. A opção pela reelaboração pessoal e profissional assumida pela equipa do projeto Fazer a Ponte constituiu-se em instância de mediação entre singulares. O professor que participava do contacto direto e permanente com outros ficava outro e, transformando-se, disso adquiria consciência.  O requisito de respeito pela autonomia do formando e pela autonomia do círculo de estudos estava intimamente ligado ao princípio da responsabilização a que essa modalidade de formação apelava. Dada a sua organização, o círculo foi sempre um verdadeiro núcleo de democracia par...

Armação de Búzios 26 de fevereiro de 2044

Volto a Biasutti, um autor da minha predileção dos idos de setenta. Ele afirmava que o processo de aprendizagem se desenvolvia numa atmosfera que exasperava as dinâmicas emotivo-afetivas e fomentava um conformismo de superfície, mascarando o mais aceso individualismo. Seria necessário repará-la, a tempo, para a futura inserção disciplinada do indivíduo no trabalho e na sociedade.  A espontaneidade cedia aos raciocínios abstratos. A imaginação e a fantasia apagavam-se sob o peso de exercícios impostos. Quando o professor receava perda de controlo, criava desconfiança relativamente a comportamentos infantis, que, no seu critério, não seriam aceites socialmente.  A realidade da criança era substituída pela realidade do adulto, que nela se projetava. Até mesmo quando a escola se reivindicava de uma organização de trabalho centrada no aluno, essa situação se verificava, ou mesmo se agravava. Mas, outras correntes eram desenvolvidas, paralelamente às divagações teoricistas.  A ...

Cabo Frio, 25 de fevereiro de 2044

Quando um mandante do ministério ordenou que eu retirasse das paredes dispositivos de relação, perguntei por que deveria obedecer à sua ordem. Respondeu que aquilo era “tudo uma palhaçada”, que “voltasse para a sala de aula” e que eu deveria obedecer às ordens de um “superior hierárquico”, a velha e já conhecida cantilena autoritária. Com todo o respeito, lhe disse que o faria, se ele me dissesse porquê. Repetiu a cantilena autoritária. Com todo o respeito pela hierarquia, pedi-lhe que fundamentasse a sua ordem. “Fundamentar?” – replicou, incrédulo com o atrevimento de um “inferior hierárquico”. “Sim, senhor inspetor. Diga-me em que modelo pedagógico se filia, qual a proposta teórica, quais os autores dessa proposta, quais os pedagogos que recomendam não utilizar os dispositivos que nós usamos”. Devo lembrar que, nesse tempo (estávamos em 1976), eu já tinha quatro pais, companheiros da primeira equipe de projeto, e que acabara com salas de aula.  O inspetor tentou “dar a volta” à d...

São Pedro da Aldeia, 24 de fevereiro de 2044

De volta ao Brasil, rascunhei durante a viagem mais algumas contribuições, mais ou menos, teóricas, que convosco partilho.  Desta vez, me arriscarei numa breve incursão no universo da… psicanálise. Não espereis profundas reflexões. O vosso avô apenas reunia informação (leia-se: teoria) que o ajudasse a resolver dificuldades de ensinagem. Eis o que teclei na velha máquina de escrever, por volta de 1972: Em que sentido pode a psicanálise (como ciência aplicada) ter "aplicação" nas práticas educativas? Mosconi dá-nos uma possível resposta, quando refere que numa prática pedagógica, não será a psicanálise a comandar, nem como prática, nem como teoria científica, mas essa mesma prática, com os fins que se propõe. Apesar de a psicanálise ser considerada determinista, por considerar o adulto retroactivo, para Freud a educação consiste, fundamentalmente, em desenvolver na criança um eu capaz de se determinar.  A formação do super-ego exigirá um meio educativo em que intervém, determi...

Aveiro, 23 de fevereiro de 2044

Não sei, netos queridos, se já estais saturados destas divagações, mais ou menos, teóricas. Mas, podereis crer que, nos idos de vinte, houve educadores que por elas se interessaram e sobre elas refletiram. Talvez, também, em 2044, haja quem esteja interessado naquilo que rascunhei numa velha máquina de escrever, em velhos papéis, que retiro do baú das velharias. Salvo do esquecimento algumas reflexões, no pressuposto de que ainda tenham alguma serventia.  Se vos desagradam, mudarei de assunto.  Como devereis ter reparado, tento fugir ao uso indiscriminado do jargão “científico”, embora não consiga… Naquele tempo – anos oitenta – o discurso da autonomia poderia desempenhar uma poderosa função ideológica, promovendo a subordinação do indivíduo a um sutil controlo organizacional.  Foi vergonhosa a ação dos teoricistas (uma das sete pragas da educação), que, dominando o jargão “científico”, encontrando-se em posições de poder, anularam a parca autonomia conseguida pela à Esco...

Viana do Castelo, 22 de fevereiro de 2044

Por aqui ando, queridos netos, no extremo norte de Portugal, visitando escolas, observando aquilo que, nos últimos vinte anos, se conseguiu concretizar: uma nova construção social de aprendizagem, que, efetivamente, garante a todos o sagrado direito à educação. Nos intervalos de viagem, descanso e escrevo. E aqui continuo a falar-vos de autonomia. Uma das cartinhas enviadas neste mês terminava com uma pergunta: “Em que consistia o trabalho autónomo?” Tentarei responder. O trabalho autónomo é uma forma de pedagogia individualizada, através da qual o aluno participa na determinação de objetivos, na gestão de tempos e espaços em que os seus projetos decorrem, bem como na avaliação.  O trabalho autónomo tende a anular a dicotomia clássica entre diretividade e näo-directividade, pelo reconhecimento da possibilidade de estatutos e papéis dos intervenientes no ato educativo. Coloca-se, aqui, o tipo de intervenção do professor, que poderá ser "diretiva" (por exemplo, para introduzir ...

Esmoriz, 21 de fevereiro de 2044

Como vos disse, o textinho que escrevera sobre autonomia, há meio século, mantinha atualidade. Por que seria? Uma das causas da “atualidade” desse textinho era a pérfida ação de “doutores em educação” saídos das catacumbas da pedagogia do século XIX, venerando Gagné, Skinner e quejandos. A ação de áulicos universitários afetados pelo teoricismo – a doença infantil da pedagogia – conferiam ao textinho atualidade e contribuíam para perenizar a tragédia instrucionista.  Espero que não vos canse regressarmos à leitura daquilo que redigi sobre o conceito de autonomia e a sua expressão praxeológica. É de prática que vos falo, não de teorização de teorias teorizadas. Faço-o porque os Gagnés dos idos de sessenta tinham todo o direito de "duvidar" da possibilidade de assunção de uma autonomia responsável, mas poderíamos admitir que a aprendizagem poderia ser reduzida a uma resposta a estímulos externos ao sujeito de aprendizagem?  Só porque escasseava a caução das práticas (ditas) alt...

Viseu, 20 de fevereiro de 2044

A minha irmã Maria enviou-me os programas eleitorais dos partidos concorrentes às Legislativas de 2024. Li todos os programas para a Educação. Acreditareis, se eu vos disser que um desses programas assumia medidas, que o vosso avô havia proposto, ao longo de décadas? Pois bem! Eu, que estava longe da pátria, que talvez não pudesse exercer o direito de voto, que já tinha passado pela política ativa e, prudentemente, dela me afastara, quase senti vontade de a voltar.  Descontando algumas premissas de origem neoliberal, citarei partes do “programa” desse partido: "Centrar a escola em cada aluno, assegurando a integração entre conhecimentos de áreas do saber; Promover a criação de verdadeiras escolas livres, usufruindo da autonomia e flexibilidade curricular e construindo na escola pública novos modelos de ensino centrados em cada criança e jovem; Criar condições para uma nova organização não baseada em turmas, mas antes em comunidades de aprendizagem; Garantir a todos os alunos uma f...