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Mostrando postagens de dezembro, 2024

Farroupilha, 31 de dezembro de 2044

Certamente, vos recordareis de eu ter achado um velho caderno com notícias dos idos de vinte. Podereis considerar inverosímeis aquelas que preencheram as primeiras páginas dos jornais do findar de anos que nunca existiram, mas acreditai no que vos digo. Na cartinha deste último dia de 2044, vos deixo com inacreditáveis notícias publicadas nesses já distantes anos: “Um menino de três anos de idade morreu após ser enterrado vivo, no município de Turiaçu, no norte do Maranhão. Os principais suspeitos do crime são os próprios irmãos da criança, de 12 e 14 anos de idade”. “Jornalista é morto a pauladas em chácara de Abadia de Goiás”. “Passou mais de 30 anos vivendo presa em apartamentos, em condições análogas à escravidão desde os 8 anos, quando foi adotada por uma professora”. “Pegou um pedaço de concreto e golpeou a vítima diversas vezes na cabeça. O homem foi socorrido em estado grave no Hospital Regional do Gama”. “Em manifestação de intolerância e fundamentalismo religioso, fanáticos d...

Bento Gonçalves, 30 de dezembro de 2044

A   educação é um ato estético, ou não é educação . E a beleza está nos olhos de quem sabe ver e sentir. Quem apenas opte por pensar estará doente dos sentidos, como disse o poeta.  S em o sensível experienciar da beleza, s omos  impedidos de experienciar o amor e a liberdade, que, juntos, nos conduz e m pelos caminhos  que levam à  sabedoria. Foi Nietzsche quem escreveu: “A voz da beleza fala delicadamente: ela se move dentro das almas mais iluminadas”. Um amigo me disse que q uem nunca se comoveu com uma suite de Bach talvez nunca tenha existido. Então, seguindo a máxima nietzschiana, por volta de 2025, este vosso avô ousou juntar a poéticos atos de amorosos professores num gesto criador de p ráxis comunitárias. As dava a conhecer, porque, n os idos de setenta, quando partilhei Vivaldi com os meus alunos, descobri que só amamos aquilo que conhecemos. E fiquei triste, quando conheci o Fábio. O moço queria ser violoncelista, mas decidiu estudar Direito. Disse-me...

Brasília, 29 de dezembro de 2044

Nos derradeiros dias de vinte e quatro, dei por mim em amargas memórias. Lembrei-me de um empresário que queira “salvar vidas de jovens”. Dizia ele que a escola da aula os matava e que fazer contraturno de escola era como tentar “enxugar gelo”. Pediu-me para “fazer uma escola como a Escola da Ponte” Com a Edilene, a Claudia e uma extraordinária equipe de educadores, ajudei uma ONG a libertar-se do assistencialismo e a fundar a Escola do Projeto Âncora. Foi considerada por curadorias internacionais como uma das melhores escolas do século XXI. Salvou muitas jovens vidas. Até que a maldade humana extinguiu esse projeto. Voltei ao convívio de educadores, que tentavam “salvar vidas”. Em meados de janeiro de 2015, no seu gabinete da Secretaria de Educação, um homem bom de nome Júlio me recebeu. No início da reunião, comentou: “Desde que assumi o cargo de secretário, já fiz muitas reuniões. Esta é a primeira em que nesta secretaria de educação se fala de… educação”. Tal como o empresário Walt...

Campo Azul, 28 de dezembro de 2044

Anísio Teixeira aconselhava a “fazer escolas nas proximidades das áreas residenciais, para que as crianças não precisassem andar muito para alcançá-las e para que os pais não ficassem preocupados com o trânsito de veículos”. Afirmava ser dispensável o “transporte escolar” que, nas primeiras décadas deste século foi sacrifício para as crianças e fonte de desperdício – muitos     milhões desperdiçados, para deslocar alunos do seu lugar de origem para dentro de prédios a que chamavam “escola”, Esses e outros anseios de Anísio se materializaram apenas teoricamente. Num projeto de “educação integral” muito em voga, vinte anos atrás, o princípio da Integralidade assim era enunciado: Que cada Escola de Educação Integral, ao elaborar seu projeto político-pedagógico, repense a formação dos estudantes de forma plena, crítica e cidadã, reorganizando os tempos escolares e inserindo, por meio de práticas fundamentadas pela pedagogia histórico-crítica, espaços e tempos de aprendizagens, com...

Grande Flor de Pedra (Itaipuaçu), 27 de dezembro de 2044

Em finais de 2024, os sites onde eram publicadas as minhas cartinhas foram alvo de ataques cibernéticos – golpes de  engenharia social ,   ataques de malware , roubo de senhas… – que os bloquearam. A corrupção moral alcançava a sua máxima expressão: a da censura. A Clarice dizia-nos que aquilo   “que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesmo”. E havia quem não desistisse . E m plena ditadura de Salazar, o Mestre Agostinho recusou assinar um documento, que os esbirros da época exigiam de qualquer candidato ao exercício da profissão de professor. Esse e outros corajosos gestos valeram-lhe o exílio no Brasil. U m ativista indiano entrou em greve de fome e disse estar disposto a morrer contra a corrupção. E, no Brasil, a OAB criou um site: “Observatório da Corrupção”. Perante a ética deturpada dos idos de vinte e a inversão de valores como não há memória, esses sinais diziam-nos que nem tudo estava perdido. Na contramão desses esperançosos gestos, o  correspon...

Encantado, 26 de dezembro de 2044

Hoje, quero falar-vos de coragem. Se o professor não ensina o que diz, se transmite aquilo que é, o que ensinaria o professor instrucionista? Deixai que vos conte uma estória. O Gastão era professor e se dizia homem digno, íntegro. Um amigo do Gastão ganhou a eleição para a prefeitura e convidou-o para ser o chefe de divisão de educação, criada pelo novo prefeito. Porém, seria necessário conferir seriedade à escolha. Foi aberto concurso público, concurso universal. Supostamente, qualquer cidadão, qualquer professor poderiam concorrer. Supostamente, em pé de igualdade! Falta referir que o critério básico para admissão a concurso foi ser titular de licenciatura em… Ciências da Religião. O Gastão foi o primeiro (aliás, o único) classificado no concurso. Acrescente-se que o Gastão era professor de… Educação Religiosa e Moral. Naqueles tenebrosos tempos, a rtistas se manifestavam, comparando a situação do Brasil com o enredo de uma novela da década de oitenta: a 'Vale Tudo'. Segundo...

Alter do Chão (Pará), 25 de dezembro de 2044

Quando, hoje, me preparava para rascunhar esta cartinha, eis que a minha amiga Lívia me envia uma mensagem. Sincronicidades? Talvez. “E quem diria que já estaríamos no Natal? Que esta data nos lembre o verdadeiro significado de estarmos juntos em nome do amor. Hoje, te convidamos a agradecer e celebrar a vida, honrando todos aqueles que deixaram esse plano num 2020 tão cheio de desafios.  Diante de todos os obstáculos aos quais fomos expostos, esse ano nos mostrou a importância do reaprender e nos ensinou que, juntos, podemos transformar o mundo. Agradecemos sua caminhada ao nosso lado nessa grande missão de sermos agentes de transformação! Gratidão! Seguimos juntos, sempre, por um mundo melhor! Muita luz e um Feliz Natal!” Pouco depois, recebi esta notícia :  “ Casados há 61 anos, Doris e Sherwood morreram de mãos dadas no hospital.” O casal deu entrada no hospital, uma semana antes do Natal, com sintomas graves da covid-19, e ambos precisaram de auxílio de ventiladores para ...

Caxias do Sul, 24 de dezembro de 2044

Certamente, todo mundo conhece a história do pescador que, tendo acabado de pescar três peixes, considerava ser alimento suficiente para a família, naquele dia e ia para casa, saborear o dia, saborear a vida. Alguém, contando essa estória, acrescentou que esse pescador era um “selvagem”. Mas seria selvagem quem recusava ter a  subjetividade industrializada, quem se mantinha alheio aos ditames de uma economia predadora? Quando me zanguei com o Natal do consumismo, discretamente me ausentava da mesa da Consoada, antes da balbúrdia do desembrulhar dos presentes. A avidez invadia a sala de jantar, o chão ficava juncado de papel rasgado e o ar ficava empestado de irritantes sons de jogos eletrônicos. Numa crônica de jornal, a minha amiga Rosely falou da febre consumista. A aquisição desenfreada de brinquedos colaborou muito para que o ato de brincar ficasse em segundo plano. Nesse recuado tempo, quando as crianças queriam brincar, não podiam. E, quando podiam, não queriam ou já nem sabi...

Lajeado, 23 de dezembro de 2044

Estávamos no final da última década do século XX, quando o ministério da educação resolveu aplicar uma prova da chamada “avaliação aferida”.  Na Ponte não se fazia prova. Na nossa escola, eram produzidas “evidências de aprendizagem”, praticava-se avaliação. Mas, os jovens deveriam tomar contato com o tipo de teste, que iria ser utilizado. Pedi a uma amiga, professora de outra escola, um dos testes, que ela costumava aplicar.  No “Preciso de ajuda / Posso Ajudar”, escrevi o convite para um encontro – a quem quisesse saber, eu explicaria o que era uma “prova”. Fiz algumas cópias do documento – aquilo que os brasileiros chamam “xerox” ~ e, no dia seguinte, pouco antes do horário combinado, já os jovens estavam à minha espera, na sala da “Iniciação”. Distribuídas as “provas”, expliquei que deveriam responder às perguntas de interpretação, resolver umas questões de gramática e redigir uma composição escrita. “Só isso, Professor Zé?” – perguntaram. “Só isso” – respondi, acrescenta...