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Mostrando postagens de março, 2024

Lustosa, 31 de março de 2044

Há precisamente vinte anos, este dia era “Domingo de Páscoa”. Se a linguagem simbólica da Ressurreição era a de podermos dar um salto para novas maneiras de pensar, recomendei aos companheiros e companheiras de velhas andanças militantes a leitura de “O Guardador de Rebanhos”. E, dentro do espírito pascal, propus que se juntasse à leitura desse poema do Caeiro uma frase de Tolstoi : “A escola deixará de ser talvez tal como nós a compreendemos, com estrados, bancos, carteiras: será talvez um teatro, uma biblioteca, um museu, uma conversa .”  Dois séculos após a escrita desse texto, o meu ânimo de mudar e inovar se desvanecia. Mas, eis que uma nova geração de educadores despertou de uma letargia de séculos.  Ressuscitei convicções e fui até à “terrinha”, enfrentar o desafio de repensar a Escola e a Educação.  Sentia-me ínfima parte de uma fraternidade coautora de uma nova construção social. A pedra de toque de suaves mutações era a solidariedade. A evocação da história do “...

Moreira de Cónegos, 30 de março de 2044

Encontrei o seguinte texto numa revista que dava pelo nome de “ O Ocidente” : "O Governo com o seu regulamento dá os meios para se conseguirem os fins, pugna pelo bom carácter civil, moral, do ensino. O aluno refratário, cheio de maldade, não obedece à palavra e tem a certeza da impunidade.  O professor quer restabelecer a ordem e não o consegue, porque a onda de insubordinação cresce.  Os mestres quase nada ensinam à falta de disciplina que não há.  As crianças que são bem-comportadas e desejam aprender pouco aprendem. Daqui nasce a imoralidade das novas gerações, cuja educação não pode a escola conseguir.  Que interessante é uma escola bem disciplinada! Mas onde a há que deixe de ser perturbada por algum de entre muitos que, saindo do seu tugúrio vem incorporar-se na comunidade limpa e asseada e eivá-la dos vermes da destruição moral, corrompendo pelo mau exemplo os corações bem formados, as consciências limpas.” O texto de onde extraí este excerto foi publicado no...

Vilarinho das Cambas, 29 de março de 2044

Hoje, falar-vos-ei dos conturbados tempos em que o vosso avô se iniciou na arte e ciência de aprender e de ajudar a aprender.  Já lá vão mais de setenta anos, andei por terras do meu amigo António. Quando me permitiu partilhar a sua “sala de aula”, pude testemunhar a relação de respeito e de autoridade, que ele mantinha com os seus alunos. Um respeito, que permitia garantir o direito à aprendizagem. Uma autoridade, que o dispensava de atitudes autoritárias.  A prática do António diferia da de outros professores.  Um desses professores me afiançou que, no primeiro dia de aulas de cada ano letivo, “dava toda a corda à turma” , esperava que a desordem se instalasse e que o líder da desordem se revelasse. Então, “parava a romaria e aplicava no mariola uma sova monumental, que era remédio santo para todo o ano” . Tal e qual!  Mas, também me foi concedido o privilégio de reconhecer a distância que vai da violência “disciplinadora” desse professor de antanho à ternura dos b...

Calendário, 28 de março de 2044

Enquanto ligava o computador, recordava um episódio recente. Tinha à minha frente cerca de uma centena de jovens. Discutíamos as virtudes e os defeitos da escola de antigamente , num ambiente de incómoda letargia. Para os espicaçar, exagerei algumas posições críticas. E, talvez por ser apanágio da juventude contrariar os adultos, um dos jovens assumiu a defesa do chamado “ensino tradicional”:  “Ó professor, escusa de vir com esses argumentos, que eu andei no ““ensino tradicional” e saí de lá muito bem preparado! Ainda bem.” – respondi, atenuando a irritação do jovem. Ele insistiu, realçando as qualidades do dito “ensino tradicional”, nomeadamente, “a preparação que dava na Matemática e na Língua Portuguesa”. Eu contrapus: “Permitis que vos coloque algumas perguntas? Faça o favor!” – disseram, em tom desafiador. Aproveitei a deixa e coloquei-lhes duas questões muito simples, uma relacionada com matemática, outra com língua portuguesa. Alguns ainda balbuciaram algo ininteligível, d...

Ribeirão, 27 de março de 2044

Antigamente, era hábito premiar o dito “professor do ano”, de modo semelhante ao da entrega dos óscares de Hollywood. Decerto, seriam ótimos dadores de aula. Não duvidava da sua competência em sala de aula e presumo que fossem profundos conhecedores dos conteúdos da sua disciplina.  Também não duvidava da amorosidade, que os “professores do ano” colocavam no seu labor. Mas, o exercício da profissão em sala de aula era manifestação visível de uma cultura profissional eivada de individualismo. A expressão “Professor do Ano” era reflexo de uma cultura profissional feita de solidão de sala de aula, de autossuficiência. E os rankings eram instrumentos de comparação de pessoas. Como se fosse possível comparar professores.  Quem estivesse na disposição de assistir às reportagens da entrega do prémio escutaria o premiado dizer que “ estudar é uma coisa para todos”, quando deveria dizer que a educação é um direito de todos. Que “ os alunos têm ciclos de atenção durante uma aula, que lh...

Eiriz, 26 de março de 2044

O episódio aqui inscrito ocorreu no tempo do WhatsApp e do Facebook, que, há uns vinte anos, eram modos de as pessoas conversarem sobre insignificâncias. Talvez já não vos recordeis desses apetrechos da era em que imperavam as tecnologias digitais de informação e comunicação. Estávamos no tempo das ditas “novas tecnologias”. Na verdade, eram tecnologias digitais rudimentares. Não raras vezes, utilizadas para manipular, ou criar dependentes de ágeis polegares. Recordo-me de ver o Marcos às voltas com sites de design, na Internet. E da Alice pesquisando numa plataforma digital disponibilizada pela faculdade de psicologia. Foi numa empresa de produção dessas plataformas digitais que o episódio incluso nesta carta se desenrolou.  O dono da empresa quis conversar comigo. E foi até Cotia, à Escola do Projeto Âncora. Conversamos: “Professor, você tem aqui um belo projeto. Trabalham com plataforma de ensino? Não. Nós criamos uma plataforma, mas de aprendizagem.  De aprendizagem? E ess...

Porto, 25 de março de 2044

Pedi à Eliza que me emprestasse palavras para esta carta, excerto de um e-mail de há cerca de trinta anos: “Professor Zé, não imaginas a minha alegria de ser compelida a ler, mesmo quando os olhos se fecham involuntariamente e a cabeça e o corpo clamam por repouso.  Obrigada, muito obrigada, por reacender a chama no meu coração de educadora.  As pessoas sempre fugiram de mim, quando eu era criança, porque perguntava demais e nunca estava satisfeita com as respostas.  Hoje, faço questão de responder a quaisquer perguntas que meus três filhos (e mais de duzentos alunos) façam. Converso muito com eles, não me canso de responder a tantas perguntas que fazem. E, quando não sei, o digo, e vamos procurar juntos.  Com a minha filha, viajo no tempo e no espaço. É incrível o elevado grau de entendimento e espiritualidade destas crianças, muito mais evidente do que o dos adultos!  Adoro instigá-las a questionar sobre o que veem, leem, ou pretendem conhecer. É fantástico, m...

Porto, 24 de março de 2044

Faltava pouco mais de um mês para a celebração dos 50 anos da “Revolução dos Cravos”, quando, não por acaso, regressei à leitura do livro “Desta Terra Nada Vai Sobrar a Não Ser o Vento que Sopra Sobre Ela” .  O título fora extraído de um poema de Brecht sobre a Alemanha nazi. O livro começara a tomar forma, quando Loyola Brandão leu num jornal que, no futuro, a ciência poderia produzir um homem sem emoção. Felizmente – pelo menos até agora, na década de quarenta – o ser humano ainda manifesta sentimentos.  Mas, sabemos que, há não mais do que vinte anos, o sistema de ensinagem produzia bonsais humanos, protótipos desse imaginado “homem do futuro”. Em 2024, era perceptível a normose instrucionista – a vida se normalizara numa anormalidade.   Na abertura do livro, Loyola isto escreveu: “No momento em que a normalidade é o normal, com os índices de feminicídios, as milícias que comandam o Rio de Janeiro e as facções, isso não é o normal. Isso é uma anormalidade dentro d...