Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de abril, 2024

Gama, 30 de abril de 2044

A tarde do dia 29 de abril de há vinte anos mostrava-se auspiciosa. Eu regressava ao Porto e à escola onde, entre oficinas de serralharia e laboratórios de eletricidade, me fizeram eletricista. Naquele dia de abril, cerca de uma centena de extraordinários seres humanos se reuniram para fazer o que (há mais de cem anos!), precisaria ser feito. Sessenta anos eram passados. Apesar de dispor de excelentes professores, o velho e obsoleto sistema deseducativo usava artifícios para prolongar a sua agonia. Eram educadores, que carregavam um insustentável peso de conscientização – eram freirianos – graças a Deus! – armados de Amor e de Coragem, que assumiam um compromisso ético com a Educação. Naquele dia de abril, eu perguntava: “O que vos move?” “O que vos impede de agir?” E depositava nas mãos de uma nova geração de educadores o insustentável peso de responsabilidade com que havia atravessado mais de meio século. Fora penosa a jornada. Para afastar tristes recordações recorri a um dos meus...

Agreste, 29 de abril de 2044

Num janeiro de há uns vinte anos, eu seguia de Toritama para Serra Talhada, a caminho de Cajazeiras. À medida que se avança para o interior, na proximidade do Sertão, o clima fica cada vez mais seco, e a  paisagem  mais árida.  Na madrugada da passagem pelo Agreste, o que mais me chamou a atenção foi o cortejo de crianças, mochilas nas costas, esperando o transporte escolar. Conversei com algumas e com a mãe de uma delas. A filha havia sido acordada cerca das cinco horas. Todos os dias era retirada do leito de madrugada. Cerca de uma hora, caminhava por estradas de pó e espinhos, até ao ponto onde o ônibus a esperaria, quando fossem sete horas.  No ônibus, as crianças dormitavam. O cansaço marcava o semblante de todas. Segui o trajeto do ônibus escolar. Aos trancos e barrancos, após meia hora de p adecimento, num trajeto de buracos e alguns pedaços de estrada, eis-nos chegados a um prédio, que denotava abandono e a que chamavam… escola.   Na Brasília daque...

Atibaia, 28 de abril de 2044

Transcrevo parte de uma carta recebida do amigo Sérgio, há vinte anos atrás. Entre Bom Jesus dos Perdões e Atibaia, se gestava um dos mais belos projetos de que vos dou notícia. E o Sérgio pressentia que a maldade humana rondava aquele lugar.  “Assisti a criação do Projeto Rosende. Já conhecia a Janaina, passei a conhecer Eulália, Matoso, Ana e outros. Uma luta admirável. O problema é que "quem é contra" sempre quer resultados mágicos e rápidos (que a escola velha e carcomida nunca sonhou em dar).  Assisti a ataques vindos de professores de dentro e de outras escolas (um dia alguém precisará explicar a burrice que é escolas públicas competindo) e de secretários de educação  Pude ir, uma vez, dar uma oficina e ver como transformações são incrivelmente difíceis, porque exigem que as pessoas que as propõem já estejam mudando a si mesmo.  Por mais que haja sucessos e fracassos, concordâncias e discordâncias, sempre terei fé nos que se abrem para a transformação ocorrer, ...

Águas Lindas de Goiás, 27 de abril de 2044

E já se passaram setenta anos sobre uma leda madrugada. Ficai tranquilos, que não irei dizer-vos o que fiz, nem onde estava, nessa leda madrugada.  Falar-vos-ei apenas de um povo, que foi para a rua terminar o que Salgueiro Maia começou. Otelo saía do seu posto de comando. As tropas voltavam aos quartéis. O povo voltava para casa. E por muitos anos, continuaria em casa, entregue às novelas e redes sociais, apático (ou desatento?) face a “tenebrosas tentações”. No 27 de abril, depois do TEDx do Porto, com a Ludmilla, percorri ruas e praças portuenses. Ao passar pela estátua do antigo bispo do Porto, recordei tempos em que era secretário do Coro da Sé Catedral do Porto, um coro de música sacra, que marcou uma época, dada a sua excelente qualidade.  A maioria dos coralistas era de classe social média-alta, vivia em pequenos palácios. Eu vivia na Ilha dos Tigres, um cortiço onde gente digna e de “algumas posses” convivia com toda a sorte de deserdados da vida, onde as pessoas mais...

Bom Jesus dos Perdões 26 de abril de 2044

Netos queridos, são passados 70 anos sobre uma leda madrugada feita de coragem e perdão.  Setenta vezes comemoramos o “Dia da Liberdade”. Que 70x7 vezes ela seja comemorada! Mas que o seja no dia-a-dia das escolas e dos lares. Ditadura nunca mais!  Por que seria que não se comemorava, no dia-a-dia o fim da ditadura? Creio ter encontrado um início de resposta. Recordo a abertura da Semana da Educação de 1998, quando a Escola da Ponte recebeu a visita do Presidente da República. No final do dia, ele apontou como preocupação maior o fato de nem todas as crianças terem acesso a um ensino básico de qualidade.  “A escola e a família são fundamentais para desenvolver a capacidade de intervenção e de influenciar o nosso tempo.  Há também responsabilidades sociais, por parte de toda a comunidade.  Os problemas da escola resolvem-se dentro e fora dela.”   Jorge Sampaio fez apelo à participação responsável e à mudança: “É preciso recusar tendências autoritaristas e sa...

Jataí, 25 de abril de 2044

Netos queridos, Na minha provecta idade, passo a vida a vasculhar o fundo das gavetas, para ler notícias, que ainda guardo em papel. Juntei algumas numa estória que vai do “maio de 68” a uma madrugada de abril, dois anos antes do nascimento do vosso pai. Cá vai. Aprendi a tocar violão com o meu amigo Valdemar. Aprendizagem interrompida, para que ele cumprisse serviço militar e fosse combater a guerrilha, em Moçambique. Faltava menos de um mês para o Valdemar terminar a sua missão numa guerra sem fim à vista. Quando regressava de uma incursão, na Berliet dos feridos, avistou uma criança, sentada na copa de uma árvore.  A criança acenou, parecendo afável. O Valdemar correspondeu à saudação com um sorriso e a simulação de um abraço. No instante seguinte, a criança atirou uma granada defensiva para dentro do caminhão.  Na última carta, que recebemos de Valdemar, o meu amigo dizia da sua satisfação de regressar ao lar. Voltou dentro de um caixão lacrado. Destino idêntico teve outro...

Valparaíso de Goiás, 24 de abril de 2040

Queridos netos, esta cartinha contém a transcrição de mensagens, que guardei no baú das velharias, para que a memória de absurdos educacionais não se desvanecesse. Eis a primeira, recebida no WhatsApp:  “ Boa noite. Já que isto aqui é uma rede de ajuda, eu queria saber se, no grupo, há mais alguma mãe surtada, ou se só seu eu mesmo. Porque vou ser muito sincera com vocês. Dever de casa acabou. Acabou a paciência. Acabou a responsabilidade social. Acabou tudo! Já não tou dando conta, não! Tou surtada, entendeu?  Por amor de Deus! Estou ficando com ódio de professor que manda fazer exercícios. Lá na Espanha, já resolveram que esse negócio de homeschooling também estressa as mães. A sério! Eu não sou pedagoga! Como é que eu vou fazer, agora, para cozinhar, para limpar e ainda fazer homeschooling?” Outra mãe assim se expressava:  “ Eu estou nessa situação com minha filha no ensino médio. Ontem, ela precisou scanear e enviar para o e-mail da professora uma lista de palavras pa...

Magé, 23 de abril de 2044

No tempo em que o COVID-19 se instalava, havia quem contrariasse conselhos de amigos e governamentais imposições. Jovens transgressores esgueiravam-se do ninho protetor, para ir “brincar lá fora”, batendo polegares em computadores. “Turmas” de solitários seres, reproduziam o modelo escolar. E a “aula” do século XIX instalava-se nas ruas e nos lares do século XXI.  Apesar dos pesares, o confinamento imposto ajudou a salvar muitas vidas. E foi, também, oportunidade de conhecer outras vidas, pois vizinhanças ocultas se revelaram. A solidariedade tomou forma de mensagens de rede social. Como aquelas que evocarei nesta cartinha.  A primeira era de leal franqueza e dizia:  “ Professor, por que passa a vida a escrever? Pouca gente lê e são poucas as minhas colegas que o entendem. E até se ofendem, quando o professor diz que não se deve dar aula.” Essa professora tentara demover as suas colegas do rame-rame da ensinagem tradicional. Em vão tentou. Colheu desdém. E sofreu efeitos...

Carapicuíba, 22 de abril de 2044

Neste dia do já distante 2024, fui com a Helena, a Mónica e a Ludmilla até à Boa-Água, ao encontro do amigo Nuno. Fomos inaugurar um diálogo entre escolas, que pudesse contribuir para a melhoria do trabalho com as crianças e os jovens. O vosso avô ainda acreditava na possibilidade de melhoria do sistema de ensino. Mais tarde, concluiria que, nesse encontro e em outros que se lhe seguiram, os educadores que acompanhei no abril de 24 seriam protagonistas de uma mutação genética do sistema de ensino.  Quatro anos antes, uma pandemia havia mostrado a necessidade de rever processos, métodos e princípios educacionais, de modo a evitar a produção de bonsais humanos, cuja a ignorância e a insensibilidade, tantas vítimas causaram.  No Centro Médico Erasmus, com referência a n ovos modos de aprende, médicos obtinham sucesso no tratamento da covid e pesquisadores afirmavam ter encontrado um anticorpo contra o vírus – o plasma de pacientes recém-recuperados podia tratar outros infectados....