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Mostrando postagens de outubro, 2024

Ceilândia, 31 de outubro de 2044

Netos queridos, Para compreenderdes vicissitudes por que a Educação passa neste ano de 2044, tereis de conhecer as do passado. Há uns vinte anos atrás, encontrei no youtube (recordais-vos desse velho site de compartilhamento de vídeos?) uma entrevista com o António Nóvoa. Nessa entrevista, assim se manifestava o amigo António:  “Palestras? Seminários? Isso serve pouco!”  Naquele tempo, ninguém duvidava da sabedoria do amigo António. Ninguém poderia pôr em dúvida a competência profissional e a autorizada palavra desse mestre. Ele tinha sido o representante de Portugal na Unesco e uma das vozes teóricas mais coerentes, consistentes, no campo da educação. E o que nos dizia o António nessa entrevista? Afirmava que o m odelo educacional centrado no professor, na sala de aula, na turma, deveria acabar. Que seria necessário estabelecer uma nova relação com o conhecimento e definir outro papel do professor. Este não deveria ser mais o professor individual, solitário, em sala de aula...

Taguatinga, 30 de outubro de 2044

Há dias, recebi uma carta enviada pela Luana. Sei que não mereço os elogios que ela me faz, mas não os retirarei da missiva. Acolho a expressão do seu saber cuidar, encaminhando o seu preito de gratidão para os educadores que tão bem cuidaram dos seus filhos. Que os encômios da Luana sejam uma singela homenagem aos professores que, há vinte anos, “Praticando Darcy”, mudaram o rumo da educação. “ Olá, professor José Pacheco. Lhe escrevo essa carta para agradecer, por me dar coragem para não deixar que ninguém fechasse as asas dos meus filhos. Em 2020, te ouvia sempre clamar com muita emoção que os professores se respeitassem e fossem éticos consigo, e com os alunos que amavam. Não, eu não sou professora e por isso não pude seguir os seus conselhos, mas, ouvi-los, tão intensamente, levou-me a procurar onde estavam aqueles professores que optaram por segui-los.  Naquele 2020, quando fomos obrigados a ressignificar tanto, resolvi ressignificar o modo como queria que meus filhos aprende...

Queluz, 29 de outubro de 2044

No distante outubro de 2024, participei num encontro de académicos interessados em conhecer a Nova Educação, nascida no Sul de há vinte anos. Aproveitei o ensejo para lhes falar de Florestan Fernandes e da sua obra. O insigne educador brasileiro nasceu em São Paulo, em 22 de julho de 1920 e na sua cidade-berço faleceria em 1995. A morte o levou, pouco antes da aprovação de uma Lei de Bases, que ajudou a construir. Não sei se no lugar etéreo onde se encontra “memória desta vida se consente”, mas sei que o eminente sociólogo se surpreenderia, se soubesse que, meio século depois da sua morte, essa lei continuava por cumprir. De absurdo em absurdo, os desgovernantes da educação tudo faziam para impedir o seu cumprimento. Narro um caso exemplar. Um governador inaugurou “ uma escola construída no Padrão Século XXI” . Pouco tempo após a inauguração, um jovem aluno foi morto a tiro dentro dessa (dita) “ escola modelo” . Outro rapaz foi atingido por uma bala perdida.  A diretora disse que “...

Minaçu, 28 de outubro de 2044

Em tempo de densas trevas, como eram os de 2020, quisera que a sociedade brasileira escutasse uma das vozes que poderia ajudar a produzir alguma claridade: o Mestre Milton Santos. O modelo cívico, cultural e político, causa da maior parte dos males do brasil dos anos vinte, fora herdado de séculos da prática da escravidão. E esse Mestre descendente de escravos assim descrevia o drama:   “A escravidão marcou o território, marcou os espíritos (…) Um modelo cívico subordinado à economia, uma das desgraças deste país” .  Devido a essa geopolítica, o centro do mundo não era o homem mas o dinheiro: “Isso abriu espaço para qualquer forma de barbárie, pela qual a gente deixa morrer crianças, velhos e adultos, tranquilamente” .  Milton sabia que a geografia de tenebrosos tempos se orientava por velhos princípios e permanecia colonizada por modelos educacionais provindos do norte escravocrata.  Quando, no princípio deste século, cheguei ao Brasil, apercebi-me de que eram esca...

Santa Cruz do Capibaribe, 27 de outubro de 2044

Há cerca de uns vinte anos, uma palavra se apropriou de considerável espaço nas redes sociais: a palavra “energúmeno”, usada em torpes ataques movidos por energúmenos contra o patrono da educação brasileira. Energúmeno é um termo de vasto espectro semântico. Daí que, cumprindo o prometido em cartas anteriores, vos fale do uso e abuso dessa palavra, nesses conturbados tempos.  Nesse tempo, a Lei de Diretrizes e Bases completava trinta e três anos, o item de desenvolvimento da educação básica não deslanchava e o índice de proficiência em língua portuguesa e matemática estacionava em miseráveis percentagens.  O Brasil ocupava os últimos lugares do PISA (para que saibam, era uma avaliação internacional, que, supostamente, media o nível educacional de jovens de 15 anos). Dado que a culpa não morre solteira, os políticos enjeitavam responsabilidades, ignorando serem, também, responsáveis pelo fraco desempenho dos jovens. Isso mesmo: agiam na ignorância da sua ignorância. E ignorânci...

Grande Flor de Pedra, 26 de outubro de 2044

Netos queridos, estareis, certamente, recordados da crítica do instrucionismo que, magistralmente, o meu amigo Celso descreveu, num tempo em que a escola de massas fomentava a destruição em massa. A hegemonia instrucionista ignorava as contribuições das ciências da educação. Mas, a voz do Celso e as de outros mestres se fizeram ouvir.  A máxima do Walt "The way to get started is to quit talking and begin doing" teve tradução num ensaio publicado por esse meu amigo. Com a devida vénia, cito o Mestre: “O ser humano se constitui por sua atividade, em todos os aspectos (condição humana: não nascemos prontos).  O conhecimento é estabelecido no sujeito por sua ação sobre o objeto. O conhecimento não se dá por “osmose”: não adianta o sujeito estar ao lado, em contato com o objeto, se não atuar sobre ele.  Dois sujeitos podem estar realizando a mesma ação — por exemplo, ouvindo o professor —, mas com graus de interação com o objeto de estudo bastante diferentes. Isto significa q...

Itaipuaçu, 25 de outubro de 2044

Na Ponte, eu havia aprendido a fazer uma educação de transição do século XIX para o século XX, do centro no professor para o centro no aluno – sujeito autónomo, protagonista, no centro do processo de aprendizagem.  No Projeto Âncora, o sujeito de aprendizagem agia no contexto de uma comunidade – compreendi que o centro do processo não era o professor, mas também não seria o aluno. Não havia centro, havia relação humana, uma relação pedagógica e antropagógica que deveria ser... humanizada. Nos idos de vinte e quatro, voltei à sala de aula. No chão de escola, trabalhei com educadores éticos – trabalho de equipe – reaprendendo a fazer pontes para uma educação do século XXI. E voltei à Ponte, para que ela voltasse a assentar raízes numa comunidade de onde nunca deveria ter saído. Quando tentava colocar alguma ordem no caos dos meus velhos arquivos de papel, dei com um documento que passava por ser orientador de política educacional de uma secretaria de educação brasileira das primeiras...

Distrito Federal, 24 de outubro de 2044

Entre os anos setenta e oitenta, participei em inúmeros círculos de estudo. No início da década de noventa, ajudei a juntar educadores de vários círculos e a Associação PROF foi fundada. Essa associação criou o primeiro centro português de formação continuada. Transcrevo parte da ata de reunião de um dos círculos de estudos realizados na PROF, há cerca de cinquenta anos: “Os professores não exercem de uma forma feliz a sua função. As pessoas começam o ano cansadas. Dizem que não lhes apetece fazer nada. Há um desgaste imenso. Ainda bem que houve esta chuva de exigências. Mostrou a fragilidade dos professores. Mostrou que, já antes, as coisas funcionavam mal. Se estivéssemos certos do nosso valor e do valor que a sociedade reconhece ao nosso trabalho, a avalanche não seria tão sentida. Pode estar a faltar determinada formação…” A ata dava conta de uma situação semelhante àquela que muitos professores vivenciavam. A sobrecarga de trabalho, associada à angústia de não conseguir ensinar to...

Novo Hamburgo, 23 de outubro de 2044

Netos queridos, Ao longo do século passado, três rupturas paradigmáticas se sucederam em vertiginoso ritmo e sem que as escolas disso se dessem conta. Após décadas de adaptação de teorias a realidades mutantes, Thomas Kuhn foi escutado, quando nos falou de um paradigma emergente.  Nos estados-nação da Prússia, da França e da Inglaterra do século XIX se gestou a escola da modernidade. Fundada no paradigma da instrução, respondeu a necessidades sociais da época. Quase hegemónica, atravessou todo o século XX. A “escola tradicional”, como era chamada, tinha por referência a filosófica proposta de Coménius, que, no século XVII, dizia ser possível ensinar todos como se fossem um só. E o primado da ensinagem perdurava, obsoleto e funesto, no tempo de irdes à escola, no início do século XXI.  A par da denúncia de Ferrière, que dizia ser a escola uma invenção do diabo, Montessori, Steiner, Decroly, Freinet, Dewey e muitos outros escolanovistas propuseram que se passasse do magistercent...