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Mostrando postagens de junho, 2024

Região da Gaudência, 30 de junho de 2044

Comprei passagem e fui numa breve viagem por Portugal, “palestrar” numa conferência sobre “inovação em educação”. Em nenhum lugar encontrei inovação, apenas achei arremedos de paliativos reciclados. Mas, aproveitei a oportunidade de rever amigos: o Rui, responsável nacional da formação de professores e o Henrique, diretor de um centro de formação. Conheci o Rui, quando jovem candidato a professor. Acompanhei-o até ao seu doutoramento. Conheci o Henrique, quando ele ainda era criança, filho do um amigo, que me deu lições de coerência. Ambos alcançaram um estatuto profissional de nomeada. De algum modo, ambos “passaram” pela Ponte, mas a vida nos levou por diferentes caminhos. No Portugal desse já distante ano de 2020, a conferência parecia inserir-se em mais uma tentativa de mudança, apontava a possibilidade de surgirem práticas inovadoras. Os palestrantes dissertaram sobre a diferença entre mudança e inovação, lendo power point repletos de sofisticação do discurso de teóricos de antiga...

Japeri, 29 de junho de 2044

Quando Einstein palestrava, era frequente a pergunta: “Você acredita em Deus?” Einstein respondia: “Eu acredito no Deus de Spinoza. ” Quem não houvesse lido algo de Spinoza não entenderia a resposta.  Baruch De Spinoza foi um filósofo holandês, descendente de portugueses. E o Deus de Spinoza lhe dizia:  “ Pare de complicar as coisas e de repetir como papagaio o que o ensinaram sobre mim! Você está aqui, está vivo e este mundo está cheio de maravilhas.” Por isso, Einstein e outros gênios se maravilhavam com o milagre da Vida. E contribuíam para que a vida de outros melhorasse.  Tal como muitos outros inovadores, Einstein foi criativo, apesar da escola. Tal como Edison, que foi expulso da escola, e Picasso, que, precocemente, a abandonou, para que não fosse cerceado o espírito criativo.  Esses essenciais seres humanos haviam saído da escola para cumprir o seu projeto de vida, porque as escolas desses tenebrosos tempos eram cemitérios de talentos. Bonsais humanos produz...

Barra do Piraí, 28 de junho de 2044

Se, nos idos de vinte, eu perguntasse a um professor português se lera algo de António Sérgio, de Adolfo Lima, ou de Bento de Jesus Caraça, a maioria nem os nomes reconheceria. Não restava dúvida de que tinham sido muito maltratados na formação inicial. Perguntava a professores brasileiros se conheciam a obra de Lauro, ou da Nise. Esses e outros nomes não eram “familiares” à maioria. De que autores teriam ouvido falar na formação continuada?  Ao lado de Freire e Anísio, esses e outros insígnes educadores produziram vasta obra, acompanhando rupturas paradigmáticas operadas num vertiginoso ritmo. Mas, os professores disso não se deram conta.  Após décadas de adaptação de teorias a realidades mutantes, Thomas Kuhn foi escutado, quando nos falou de um paradigma emergente. Nos estados-nação do século XIX se gestou a Escola da Modernidade. Fundada no paradigma da instrução, respondeu a necessidades sociais da época e atravessou todo o século XX. A “escola tradicional”, como era cham...

Paracambi, 27 de junho de 2044

No WhatsApp, o amigo Celso convidou-nos para um salutar debate sobre um ou dois tópicos. Um dos tópicos de reflexão era o dispositivo central do modelo instrucionista de escola: a sala de aula. Dois anos antes dessa conversa, eu havia sido convidado para redigir o prefácio da “Arte da Aula”. Esse livro reunia depoimentos de docentes universitários. Alguns deles foram para mim fonte de inspiração. E até tive ensejo de colaborar com um desses mestres, quando ele desempenhava o cargo de ministro da educação. Recordo o dia em que, reunidos no “Aprendiz”, o Renato me questionou :  “Professor, você crê que a inovação nasce sempre na periferia do sistema?” Respondi:  “A mudança, que poderá levar à inovação deverá começar na escola, no ministério e na universidade, simultaneamente.” Assim continuo a pensar. Aquilo que aconteceu, a partir de 2024, foi disso confirmação, como vereis.   Considerei privilégio o acesso a depoimentos de mestres da arte de ensinar. Li e reli exercí...

Vassouras, 26 de junho de 2044

A saga da Escola da Fonte Santa parecia não ter fim. E mais um órgão de informação noticiava:  “Fonte oficial da autarquia afirmou que a “Fonte Santa era a última escola do concelho que mantinha o modelo do Estado Novo”. A autarquia afirma que “a escola está desadequada em termos pedagógicos”. E que “os alunos vão ser transferidos”. Mais uma vez, um “sapateiro subia acima do chinelo”. Decerto, a “fonte oficial” não sabia que quase todas as escolas do seu concelho praticavam o “modelo do Estado Novo”. E que a Escola da Fonte Santa, pelo contrário, tentava libertar-se desse velho e obsoleto modelo. Num tempo em que a administração educacional geria as escolas como quem geria uma padaria, “fontes oficiais” se arrogavam no direito de dizer: “os alunos vão ser transferidos”. Tentamos esclarecer a situação enviando um “direito de resposta” ao jornal que publicara essa notícia. O jornal recusou publicá-lo. No baú das velharias, encontrei o “direito de resposta”. Vo-lo dou a conhecer. “É d...

Morsing, 25 de junho de 2044

No junho de 2020, o ser humano descia aos patamares mais profundos da bestialidade. Homens armados atacaram maternidade s dos Médicos Sem Fronteiras,  "para matar mães" . A mídia assim descrevia esse hediondo crime: “ 24 pessoas foram assassinadas: recém-nascidos, mães e enfermeiras. Os atacantes entraram nas maternidades, disparando contra as mulheres que estavam nas suas camas. Onze mães foram mortas, três das quais estavam na sala de parto prestes a dar à luz ao seu bebé”.   Vivíamos uma crise civilizacional sem precedentes. Vivíamos na proto-história da humanidade, servidos por uma Escola da Idade Média e desgovernos que falavam de “estados descontrolados”.  No Rio da pandemia de dois mil e vinte, num dos estados ditos “descontrolados”, professores lançavam um irresponsável convite aos alunos:  “Ide até a porta da escola, rapidinho, porque não vai ter problema!”.   Em plena crise pandémica, por insana decisão ministerial, as inscrições para o Enem tin...

Vila Modesto, 24 de junho de 2044

No fundo do baú das memórias, encontrei um caderno com apontamentos de uma entrevista com um eminente filósofo e educador:  “A escola precisa distinguir o que vem do passado e deve ser protegido daquilo que precisa ser deixado para trás, porque é arcaico”.  Bem pregava Frei Tomás! Foram raros aqueles que escutaram o sábio e deixaram para trás o que era arcaico. Ao longo das primeiras décadas deste século, as reformas e os “pactos pela educação” não lograram emancipar-se do sarro da velha escola. Há vinte anos, eu manifestava perplexidade perante tentativas de melhorar o que, há mais de um século, já não poderia ser melhorado. Ao longo do século XX, falharam nobres tentativas de mudança, movimentos renovadores. E, em pleno século XXI, a saga continuava. Uma escola, que quase se libertara de arcaísmos recebeu da secretaria de educação uma “proposta de retorno às avaliações bimestrais”.  Alegando o “baixo rendimento” da escola (que, aliás, se provou ser falso argumento), a ...

Vila Mariana, 23 de junho de 2044

Queridos netos, depois de longa viagem por sacrificadas terras gaúchas, passei por Brasília, para comemorar com velhos amigos uma data histórica. E, nesta cartinha, voltarei a falar do “Currículo em Movimento”. Espero que a sua leitura não seja maçadora.  Nos idos de vinte, o “Currículo em Movimento” continuava inerte. A secretaria de educação impunha às escolas um modelo educacional fóssil, alheio ao misto de teoria crítica e escolanovismo proposto no documento.  Se quiserdes e para entenderdes as contradições entre teoria e prática, poderei enviar-vos o texto. Passá-lo-ei do formato em PDF (que, há muito, deixou de ser utilizado) para um suporte de texto que vós utilizeis. Esse velho documento foi posto em prática nas comunidades de aprendizagem da década de vinte. Aqui vos deixo algumas citações. “Em 1957, Anísio Teixeira concebeu o Plano Educacional de Brasília. Tratava-se de um plano ousado e inovador, que traria da Bahia a experiência de escola-parque. Não somente: refor...

Vila Wesley, 22 de junho de 2044

O episódio aqui descrito ocorreu no tempo do WhatsApp e do Facebook, que, há uns vinte anos, eram modos de as pessoas inventarem fofocas e conversarem sobre insignificâncias.  Talvez já não vos recordeis desses apetrechos da era em que imperavam as chamadas tecnologias digitais de informação e comunicação. Estávamos no tempo das ditas “novas tecnologias”, mas, na verdade, eram tecnologias digitais rudimentares e, não raras vezes, utilizadas para manipular ou criar dependentes de ágeis polegares. Recordo-me de te ver, querido Marcos, às voltas com sites de design, na Internet. E da Alice pesquisando numa plataforma digital disponibilizada pela faculdade de psicologia. Foi numa empresa de produção dessas plataformas que o episódio incluso nesta carta se desenrolou. O dono da empresa quis conversar comigo e foi até Cotia, à Escola do Projeto Âncora. Conversamos: “Professor, você tem aqui um belo projeto. Trabalham com plataforma de ensino?” “Não. Nós criamos uma plataforma, mas de apr...