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Mostrando postagens de julho, 2024

Natal, 31 de julho de 2044

Netos queridos, esta cartinha encerra (por agora) a série de comentários, que venho fazendo, avaliando a avaliação.  Por finais do julho de há vinte anos, já muitos p ais e diretores se reagiam, dizendo que os rankings das escolas não eram credíveis. Atentos à mercantilização da Escola Pública, com educadores atentos, partiram do questionamento dos rankings para reacender o debate entre o setor público e o privado.  As escolas privadas congratulavam-se com os resultados, enquanto pais e diretores das escolas públicas diziam que o ranking comparava o incomparável. Fosse como fosse, as preocupações com os rankings eram migalhas, se comparadas aos problemas que, a montante do sistema, condicionavam a aprendizagem – como o drama dos que abandonavam ou não completavam o ensino médio, entrando sem diploma no dito “mercado de trabalho”.  Nos idos de vinte, reinava o caos social, em grande parte resultante de um modelo educacional somente fundado na proposta instrucionista do sé...

Cascavel, 30 de julho de 2044

Na última cartinha do mês de julho, pretendo concluir uma série dedicada à avaliação da avaliação. Partilhei convosco uma pequena parcela de um vasto acervo de episódios. Não me atrevi a mencionar uma parte significativa do anedotário, tal a incredulidade que inspiraram os episódios que foram sendo narrados, e apesar de não duvidar da honestidade dos professores confidentes. Portanto, devereis multiplicar por cem (ou por mil) o pasmo que vos tenha suscitado a sua leitura.  A imagem que juntei a esta cartinha contém uma pergunta. Eu responderia que a Avaliação avaliaria ambos: o ensino e a aprendizagem. Ajudaria a resolver dificuldades de aprendizagem dos aprendizes e a colmatar dificuldades de ensinagem dos ensinantes. Mas, sobretudo, a avaliação deveria ser uma avaliação da avaliação que, nesse tempo, se fazia. Variáveis de natureza socioeconómica e cultural interferiam no processo de aprendizagem. A Família e a Sociedade condicionavam a aquisição, produção e partilha de conhecime...

Ponta Negra, 29 de julho de 2044

(continuação) Sob o pretexto de completar a prédica suspensa, fui dizendo à minha amiga Alice que a indicação de valores (40%, 18 valores, 112 pontos...) servirá para enfeitar testes, mas pouco ou nada serve as intenções de uma avaliação sumativa. Não diz  o que o aluno aprendeu , informa (e mal)  o quanto aprendeu . Os testes, por si só, não fornecem indicadores fiáveis.  Ela confessou que não sabia o que fazer, mas (que remédio!) lá teria de preencher as pautas, no fim do período. Ela e os outros professores que não se preocupavam com  "coisas"  de somenos importância.  Com infinita paciência, fiz ver à minha amiga Alice que, numa escala de 1 a 5, um ponto, algures entre 2 e 3, é diferente dos outros. Que essa escala considera dois níveis negativos e três níveis positivos, e que, entre 2 e 3 temos uma situação de critério (o mínimo relativamente às aprendizagens pretendidas). Mas que critérios podem ser estabelecidos para uma escala ordinal, partindo de r...

São Miguel do Gostoso, 28 de julho de 2044

Lewis Carroll pôs a Alice à conversa com o Gato: "Alice -  Podes dizer-me, por favor, que caminho hei-de seguir a partir daqui? Gato -  Isso depende muito do sítio aonde queres chegar. Alice -  Não me preocupa muito onde vou chegar. Gato -  Então não interessa por que caminho hás-de seguir. " Por acaso ou talvez não, uma Alice ansiosa me telefonou: "Desculpa estar a incomodar-te. Sei que o teu tempo é pouco, mas... Desculpa só te telefonar quando estou com problemas" – e foi direta ao assunto: "Olha Zé, meteram-me numa equipa incumbida de elaborar "critérios de avaliação". É mais uma chatice por culpa do despacho trinta. E, agora, com esta coisa das competências, é mais difícil saber-se quando se deve dar um 2 ou um 3, não é?" E esgotada a retórica da praxe, compreendi que a Alice não estava interessada em elencar critérios de avaliação, mas dar aos seus colegas alguma segurança no conselho de turma de fim de período letivo, que já se avizinhava...

São Sebastião dos Ferreiros, 27 de julho de 2044

O amigo Rubem dizia que, se a universidade quisesse insistir na seleção de alunos, deveria substituir os “vestibulares” por algo mais rigoroso e justo: um sorteio. Com o sorteio, os inúteis e caros cursinhos desapareceriam. E o sorteio libertaria as escolas da escravidão aos padrões de conhecimento impostos pelos vestibulares, ficando livres para, verdadeiramente, educar.  Para que saibais, o Enem era um exame nacional, um instrumento de avaliação falível, que, para além de não ser rigoroso, era, na sua essência, excludente. Para ilustrar o que afirmo, respigo um naco de texto do meu velho “Dicionário dos Absurdos da Educação”: “A Adélia sabia a matéria na ponta da língua. Fizera a mnemónica das fórmulas e repetira ladainhas em voz rezada, na crença de que a memória a não traísse. Saiu vitoriosa da contenda travada com uma pilha de livros: fez a decoreba de todos, um por um. Mas acabou derrotada por uma... ampulheta.  Abdicou da novela das sete e – supremo sacrifício! – o namo...

Espraiado, 26 de julho de 2044

Falava-se da avaliação do desempenho do aluno, como se não fosse necessário avaliar o desempenho do… professor. Esse sensível âmbito da avaliação era relegado para as calendas, por via da dificuldade de definir parâmetros, critérios e instrumentos de avaliação. Porém, nos idos de oitenta, a avaliação de desempenho entrou na “ordem do dia”. Esperancei. Através dela, seriam extintas castas e dignificada a profissão?  A proposta negociada entre sindicatos e ministério fundava-se no pressuposto de que a valorização profissional dos educadores determinaria a melhoria qualitativa do exercício da profissão. Como convinha, a discussão foi pacífica a de nulo efeito. Quem se oporia a que fosse dada relevância à qualidade das práticas? Se a avaliação fosse, efetivamente, de desempenho, por que motivo não se valorizaria "o exercício de cargos pedagógicos e as atividades desenvolvidas na escola, na comunidade educativa e no âmbito sociocultural" (sic)?  E o que se poderia criticar na inte...

Bosque Fundo, 25 de julho de 2044

A comunicação social dos idos de vinte era pródiga na divulgação de disparates, mas também de estudos. Um jornal deu a conhecer as conclusões de um deles, que mostrava terem sido justas as minhas palavras de há décadas: três quartos dos alunos das universidades colavam.  O estudo tinha um título bem sugestivo: "Copianço nas universidades, o grau zero da qualidade". O autor do estudo referia que a carga moral da assunção de uma conduta desviante poderia ter calado mais do que um dos alunos inquiridos. Mas que, apesar desse possível desvio por defeito, seriam "três quartos" os que exerciam a arte de bem colar (copiar).  Os professores-polícias eram ineficazes face à criatividade dos alunos: um auricular escondido no cabelo comprido, uma mensagem no celular... No jogo do gato e do rato, o felino docente somente lograva desenvolver no rato discente competências e habilidades que reforçavam o faz-de-conta da avaliação por exame.  Aqueles que policiavam a realização das p...

Jardim Guaratiba, 24 de julho de 2044

Permiti, queridos netos, que vos fale mais um pouco sobre avaliação. Em particular, daquela que se fazia na Ponte. Quem a visitava transformava a estranheza em perguntas:  “ Existe um processo de avaliação? Como se dá esse processo? Que critérios são usados para avaliar os alunos? Como a criança se apropria dos seus avanços e dificuldades?” Eis o que o pai de uma aluna respondeu: “Ao ver como a avaliação acontece na Ponte, eu pergunto: será que existe um processo de avaliação nas escolas tradicionais?  Na Ponte, vejo que a avaliação acontece o tempo todo. Cada passo que a minha filha dá é avaliado, a começar por ela mesma.  Vocês não imaginam como é difícil, para quem passou a vida inteira sendo avaliado por outros, esperando coisas como notas, graus etc., se autoavaliar! Não estamos habituados e sentimos tanta dificuldade! Agora, imagine uma criança da Ponte: dia após dia, mês após mês, ano após ano, pegando um objetivo de aprendizagem, fazendo atividades para atingir aq...