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Mostrando postagens de agosto, 2024

Brasília, 31 de agosto de 2044

Certamente, estareis recordados de vos ter falado de um empresário que queria “salvar vidas de jovens”. Dizia ele que a escola da aula os matava e que fazer contraturno de escola era como tentar “enxugar gelo”.  Pediu-me para “fazer uma escola como a Escola da Ponte”. Nunca quis fazer no Brasil uma escola igual à da Ponte, mas aceitei cumprir o desejo de um bom homem que, minado por um câncer, morreria, poucos meses depois. Com a Edilene, a Claudia e uma extraordinária equipe de educadores, ajudei uma ONG a libertar-se do assistencialismo e a fundar a Escola do Projeto Âncora. Dei a essa escola quatro anos de vida gratuita. E, em 2014, ela foi considerada por curadorias internacionais como uma das melhores escolas do século XXI. Quando, em 2014, fui convidado pelo IBICT para coordenar uma pesquisa, no âmbito do projeto “Brasília 2060”, e para integrar o Grupo de Trabalho da Criatividade e Inovação do Ministério da Educação, passei a viajar, frequentemente, para a capital. Voltei ao...

Espírito Santo do Turvo, 30 de agosto de 2044

Querida Alice, no dia do teu quadragésimo terceiro aniversário, te parabenizo e evoco peripécias do tempo em que nasceste. A Ponte era visitada por educadores de todo o tipo. Havia aqueles que entravam num qualquer espaço respeitando o silêncio de estudo que nele reinava e aqueles que atendiam celular em altos brados, dentro das salas. Havia quem tomasse anotações ou copiasse dispositivos e também havia quem os furtasse. Muitas vezes escutei queixas de alunos: “Professor Zé, levaram o meu plano do dia!” “Professor Zé, desapareceu da parede o “Acho Ruim” e o “Preciso de Ajuda”!” Muitos teoricistas parasitavam a Ponte, recolhendo dados para “estudos” e publicavam livros com materiais e dispositivos por nós criados, como se fossem da sua autoria.  Quando visitei uma escola norte-americana, a professora disse ter inventado um “inovador” dispositivo: “I need help” / “I can help” – quarenta anos após a Ponte ter introduzido esses dispositivos na prática corrente, os norte-americanos os “...

Itaipuaçu, 29 de agosto de 2044

Queridos netos, ficastes surpreendidos, quando referi uma das caraterísticas do Sistema: a corrupção moral, intelectual e económica. Sabeis que não gosto de falar do “vil metal”, mas a isso me vejo obrigado, para ficardes a saber que não vos menti.  Recebi muitas mensagens como esta: “Escrevo este e-mail para lhe agradecer o presente que são as “Cartas para Alice”. Quando comentei com algumas “gaivotas” que conheço que havia recebido as cartas, elas me pediram cópias e eu não as dei, presente não se dá a ninguém. Então, pediram-me que as mostrasse.  Li para elas uma carta. Você precisava ver como ficaram emocionadas. Pediram que eu lesse as outras. A certa altura, me apercebi de que tinham começado a trabalhar como na Escola da Ponte. As crianças, as famílias e os professores se sentiam mais felizes. As crianças aprendiam mais e melhor. Mas, agora, vejo essas professoras desesperadas. Não conseguem manter os projetos. Pagam do seu bolso os materiais, a merenda das crianças, es...

Morada das Águias, 28 de agosto de 2044

Queridos netos, acontecimentos felizes marcaram o ano de 1976: o nascimento do vosso pai e a chegada do vosso avô à Escola da Ponte. Com outros pais, assumi a decisão ética de mudar de prática, preparei a escola que o meu filho e os ditosos filhos de outros pais mereciam: um tempo e um lugar onde pudessem ser crianças sábias e pessoas mais felizes.  No início deste século, a minha preocupação era com aquilo que vos esperaria, quando chegasse o tempo de ir à escola. Acreditava nos professores e confiava que vos ajudassem a aprender a gramática de tempos que seriam os vossos e que, certamente, nós já não iríamos viver. A minha apreensão se desvaneceu, quando soube que a escola que vos acolheu era a de um professor de matemática e ex-aluno da Ponte: o vosso pai. Com imenso desvelo ele vos cuidou.  Entretanto, conheci uma Maria exímia contadora de estórias. No seu tempo de juventude, lia e relia contos de fadas e romances policiais. O seu pai não aprovava tais leituras, porque as ...

Jardim Atlântico, 27 de agosto de 2044

Os projetos que visaram resgatar a vocação da Escola, não seguiam sempre rumos paralelos. Súbitos reencontros nos mostraram que os projetos também se alimentam de ocultas e imprevisíveis solidariedades.  O meu projeto de vida profissional teve início em 1970. Interrogava-me e interrogava companheiros de profissão: “Por que será que eu dou aulas tão bem dadas e há sempre alunos que não aprendem, que precisam de apoios, ou que até reprovam?”  Invariavelmente, esta era a resposta: “Eles não conseguem acompanhar o ritmo das aulas. Têm dificuldades de aprendizagem. Alguns são deficientes”. Justificava-se o insucesso com base na teoria dos dotes ou através de teorias de natureza sociocultural ou econômica: “Eles são pobres. Os pais são analfabetos. Não têm livros em casa”. As origens da educação compensatória remetiam-nos para práticas como as de Froebel, nos primeiros jardins de infância das favelas alemãs, no advento da primeira revolução industrial, ou as “Casas dei Bambini” de M...

Terras de Entre-ambos-os Aves, 26 de agosto de 2044

No artigo de que ontem vos falei, o amigo José Alves fazia referência a três livros: “ Nova Organização Pedagógica da Escola Pública. Caminhos de possibilidades ” , da autoria de João Formosinho, José Verdasca e dele mesmo, no qual se explicitavam os modos alternativos de organização das aprendizagens; a obra “ Promoção do sucesso educativo – estratégias de inclusão, inovação e melhoria ” e um “Ensaio de resgaste do labirinto escolar inserido nesta mesma publicação”. Dissera o amigo José que essas e outras publicações tinham “tornado claros os caminhos para a necessária metamorfose e ilustrado os modos concretos de o fazer” – era engano de alma ledo e cego! Era teoricismo, que a fortuna não deixou durar muito. Num despacho datado de agosto de 2024, o Ministério da Educação reconhecia “a excessiva rigidez e uniformidade do sistema” e procurava instituir uma segunda edição dos “Projetos Piloto de Inovação Pedagógica”. Se a primeira edição fora um fiasco, a segunda iria pelo mesmo ca...

Ubatiba, 25 de agosto de 2044

Vai para uns vinte anos, o amigo (e insigne académico) José publicava no jornal “O Público” uma crónica com o sugestivo título de “Escola organizada para o insucesso educativo – a lenta evolução de uma prática”: “A escola está organizada para produzir o insucesso educativo. Esta foi a tese defendida por João Formosinho com um alargado conjunto de argumentos, numa conferência proferida em 1987, no âmbito da Comissão Reforma do Sistema Educativo criada pelo ministro João de Deus Pinheiro (1986) e que conviveu com o tempo da conhecida reforma de Roberto Carneiro (1987-1991). Esta tese gerou polémica, tendo até gerado a mudança de título (de insucesso para sucesso). Mas a demonstração era irrefutável. As causas estruturais desta produção reportavam-se às três funções básicas da escola (instruir, socializar e estimular as jovens gerações) e tinham a ver, em síntese, com o “modelo curricular único e pronto a vestir”, a pedagogia da impessoalidade e da transmissão, o comando e o controlo cent...

São Vicente, 24 de agosto de 2044

No janeiro de 2022, a OCDE divulgou o estudo “Back to the Future of Education”. Nele se previa que, vinte anos depois (há dois anos, portanto) a escola estaria possuída pela inteligência artificial, a realidade virtual. Admitia-se no documento o eventual desaparecimento dos professores, ou a sua sobrevivência limitada a conceber conteúdos para serem administrados por robôs.  O relatório da OCDE previa o desaparecimento dos sistemas de ensino existentes nos idos de vinte e a mistura de aprendizagem no domicílio e aprendizagem online. Embora o estudo refira “ensino”, ousei substituí-lo por aprendizagem, porque, quando demolimos um perverso “sistema”, uma nova construção social de aprendizagem e de educação evitou o descalabro previsto no documento da OCDE. Em 2022, as tecnologias digitais facilitavam invasões da vida privada, condicionavam a saúde mental das comunidades, comprometiam o exercício democrático. A Escola continuava a formar autómatos. Era posto em causa o conceito de hum...

Bom Jesus dos Perdões, 23 de agosto de 2044

Transcrevo parte de uma carta recebida do amigo Sérgio, vinte anos atrás. Entre Bom Jesus dos Perdões e Atibaia, se gestava um dos mais belos projetos de que vos dou notícia.  O Sérgio pressentia que a maldade humana rondava aquele lugar:  “Assisti a criação do Projeto Rosende. Já conhecia a Janaína, passei a conhecer Eulália, Matoso, Ana e outros...  Uma luta admirável. O problema é que "quem é contra" sempre quer resultados mágicos e rápidos (que a escola velha e carcomida nunca sonhou em dar).  Assisti a ataques vindos de professores de dentro, de outras escolas (um dia alguém precisará explicar a burrice que é escolas públicas competindo) e de secretários.  Pude ir, uma vez, dar uma oficina e ver como transformações são incrivelmente difíceis, porque exigem que as pessoas que as propõem já estejam mudando a si mesmo.  Por mais que haja sucessos e fracassos, concordâncias e discordâncias, sempre terei fé nos que se abrem para a transformação ocorrer, do ...

Campos de Goytacazes, 22 de agosto de 2044

No tempo em que o vosso avô tinha a idade que agora tendes, um pássaro livre chamado Camus disse que as grandes ideias vêm ao mundo mansamente, como pombas. Para que nos apercebamos da sua presença, basta sermos capazes de escutar, no meio ao estrépito de impérios e nações, o suave acordar da vida e da esperança.  A Hilda era um daqueles seres imprescindíveis, que nos faziam “acordar”. Lutou, toda uma vida, uma luta pacífica, mas determinada. Estava já perto das suas noventa primaveras e não desistia de porfiar por uma escola de crianças felizes.  Poderá parecer estranho que eu recorra a uma metáfora futebolística, para vos falar desses maravilhosos seres humanos, mas ela se ajusta perfeitamente ao que vos quero contar.  Talvez vos recordeis desse desporto de multidões muito em voga nessa época, quando um português que usava o nome do filho de Deus aportou ao Brasil, para ser treinador do Flamengo. Pois, há uns exatos vinte anos, eu ia descendo a Serra das Araras, viajand...