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Mostrando postagens de março, 2025

Braga, 31 de março de 2045

Netos queridos, o prometido é devido: aqui vos deixo a resposta à interrogação formulada pelo maior responsável pelos destinos da formação contínua de professores dos idos de vinte e cinco: “Formação contínua de professores: Para quê?”. Em 1992 e se a memória não me falha, ambos cursávamos um mestrado. A minha dissertação tinha por referência duas décadas de formação em círculo de estudos, demonstrando que a formação poderia servir para nada, se não questionasse o modelo educacional instrucionista. A faculdade de ciências de educação e as escolas de formação, que deveriam ser espaços e tempo de produção de conhecimento, eram inovadoras em teoria e conservadoras na prática. Trinta anos após a publicação do Decreto-Lei nº 249/92, um discurso sofisticado não disfarçava a miséria das práticas. Enquanto formadores freirianos não-praticantes idolatravam Freire, Bourdieu era traído em salas de aula reprodutoras de uma pedagogia fóssil. E teoricistas, que jamais tinham alfabetizado, promoviam ...

Porto Velho, 30 de março de 2045

Nos idos de setenta, coordenei uma equipe de formadores, na iniciativa ministerial de introdução de novos programas para o “ensino primário”. Mais por intuição do que por referência a um quadro teórico, fizemos do primeiro momento um encontro de escuta – e os professores se queixaram do preço dos livros. Num fim-de-tarde, procedemos a um levantamento de recursos, tendo encontrado uma “Biblioteca Pedagógica” escondida num anexo da Delegação Escolar. Jamais havia sido utilizada pelos professores. Retirado o pó, inventariados os livros, estes passaram a circular pelas escolas. O ritmo de requisições era intenso. Em novembro de 1978, era publicado o primeiro número do "Projeto", boletim do recém-criado “Centro de Documentação Pedagógica”. O texto de abertura tinha um título sugestivo: "O que foi e será a formação continuada dos professores". Os boletins seguintes davam notícias de inúmeros projetos, encontros, exposições, estudos. Inusitadamente, a Biblioteca Pedagógica...

Cabo Frio, 29 de março de 2045

Na Psicologia e na Sociologia da Educação, estudei dois conceitos, que ajudam a compreender por que razão as escolas dos idos de vinte e cinco eram cenário de violência física e simbólica: a “cultura de escola” e o “clima de escola”. Antropologicamente, cultura pode ser compreendida como sistema comum de significados, do qual fazem parte conteúdos implícitos e explícitos reproduzidos, através de gerações, por membros de um mesmo grupo social. Ipso facto, poderemos definir “cultura de escola” como uma rede de significados compartilhados pelo conjunto de atores sociais que participam e interagem na construção do cotidiano da escola. As escolas, apesar de integradas em contextos sociais mais amplos, desenvolvem uma cultura específica, que ultrapassa a racionalidade técnica e que tem na escola a sua origem. A capacidade de uma escola produzir a sua própria cultura deriva decorre da capacidade elaborar uma dinâmica interna, a partir dos discursos, formas de comunicação e linguagens...

Realengo, 28 de março de 2045

Cumprido um quarto de século sobre o “Massacre de Columbine”, a série “Adolescência” chegou para lembrar e prevenir. Estudos e punições não haviam logrado deter a onda de violência protagonizada por jovens possuídos pelo ódio à Escola. No Brasil, entre o fatídico 1999 de Columbine e o ano de 2023, cerca de meia centena de alunos e professores brasileiros morreram em ataques a escolas. As imagens colhidas pelas câmera de filmar e os sons escutados pelos policiais, que visitaram a escola, eram idênticos àquelas que poderiam ser vistas e escutados em escolas de Colombine e do Realengo, dos EUA e do Brasil - as escolas permaneciam tão “prussianas” quanto no século passado: sala de aula, turma, sinal… “Camisa pra dentro!” “Desculpe, senhora!” “De que merda ela tá reclamando? Que inferno! “Quer saber? Vamos logo f… com a vida do Jamie! “Vamos começar pela 8-G. É a turma do Jamie” Aberta a porta da sala, depararam com uma professora aos gritos: “Gente, para! Senta!” “James, guarda os fones de...

Itaipuaçu, 27 de março de 2045

No mês de março de há vinte anos, a minissérie Adolescência nos interpelou com uma abordagem sensível e realista sobre questões sociais. Na Internet, não faltaram comentários: “É uma peça artística, que soa como um grito de alerta. Me deixou completamente em êxtase. Surreal!” “Sempre houve crimes, mesmo antes das redes sociais. O que podemos refletir é que, hoje, os pais não têm tempo para os filhos e a escola é só uma forma de passar conteúdo e tirar $$$ dos pais. É uma bola de neve. E o mais terrível é que ele não fala sobre a menina morta, sua preocupação é com o menino, que exacerbou seu machismo com as redes sociais. Preocupante esse olhar!” “Uma série maravilhosa, emocionante, impactante. A última cena deste pai é estarrecedora, corta o coração de qualquer pai e mãe que esteja assistindo. Vale muito a pena assistir, para termos a noção aonde as redes sociais levam uma criança a ceifar vidas.” “Capitães de Areia” trata sobre isso tudo numa perspetiva brasileira, ainda mais poética...

Santo Antônio da Patrulha, 26 de março de 2045

Oitenta e quatro meninas de dez a catorze anos deram à luz em São Paulo, no período de três meses.   Havia um silêncio cúmplice perante essa e outras violências, que encobria os vinte e seis mil partos anuais, de crianças entre dez e catorze anos. Havia um avanço de um fundamentalismo hipócrita, encorajado por discursos e ações que reforçavam o preconceito e a misoginia. Proteger as crianças era dever da família, da sociedade e do Estado, mas uma sociedade doente   falhava em todas as esferas de proteção. Essa situação suscitou recordações de há meio século.  Muitas crianças, que não frequentavam a Escola da Ponte nos visitavam, no seu contraturno de escola. Os nossos alunos os acolhiam e com eles partilhavam aprendizagens. Certo dia, observei uma dessas crianças aproximando-se do prédio da Ponte. Parou na porta sempre aberta, espreitando. Convidei-o para entrar. Observando as crianças, desejávamos que a grega  scholé  se fizesse permanente. Enquanto brincavam, ...

Mogi Mirim, 25 de março de 2045

Neste mesmo dia, mas de há vinte anos, me despedia da Liliana, do Jorge, da Jociara, da Carol, do Marcelo… deixando-os, como ontem vos disse, com a promessa de voltar.  Afastando-me de um “lugar” de fazer amigos, deixei-me tomar pela preocupação. Estava nascendo mais um projeto de humanização da Escola. E eu já temia pelo seu futuro, no contexto de um sistema de ensinagem obsoleto, autoritário e corrupto. Nesse mesmo dia, decorria uma audiência, que poderia vir a ter um ingrato desfecho para a Fabi. A minha amiga era acusada de desobediência hierárquica, só porque havia dado visibilidade pública a um excelente projeto, na contramão de um modelo educacional caduco. O seu pecado foi ter assumido um compromisso ético com a Educação, enjeitando um modelo educacional, que provava milhões de alunos do direito à educação, imposto às escolas por uma Administração Educacional autoritária. Do capítulo das conclusões de um kafkiano processo não constava o episódio da “dedetização” e aquilo qu...

Praia Brava da Fortaleza, 24 de março de 2045

Foi por março de há vinte anos, que encontrei o “lugar”. Fui até lá levado pelas circunstâncias da vida e pelas minhas amigas Roze e Teca. A Roze recuperava de perseguições sofridas e, enquanto vovó corujinha, produzia belos nacos de literatura para a infância… e não só – uma dúzia de anos antes, com o amigo Arnaldo e uma multidão de educadores éticos, havíamos traçado as coordenadas de um projeto, que a corrupção moral logrou extinguir. E estávamos de regresso às lides da Mudança. A amiga Teca dizia que, ainda que aposentada, os seus sonhos jamais se aposentariam – sonhos de Humanização, que a Teca nunca deixara de alimentar. Portanto, eu não poderia estar em melhor companhia do que na companhia de quem me ensinava Humanidade. O “lugar” de que que vos falo era a Fortaleza de Ubatuba, uma comunidade caiçara como qualquer outra e diferente de todas as outras, que eu tive ensejo de conhecer – já havia passado pelo Pouso do Cajaíba, pela Praia do Sono, por outras paragens de gente boa, ma...

Perequê-Açu, 23 de março de 2045

No Portugal de meados de junho de 2020, eram publicadas as conclusões de um inquérito sobre a forma como estava a decorrer o ensino à distância. Mais de metade dos professores continuava sem conseguir contactar com todos os alunos, através da Internet ou por outras vias. E 93,5% dos professores inquiridos assumiram que, dando aula online, agravavam as desigualdades entre alunos. Tinham sido “leccionados conteúdos “novos”. Mas não chegaram aos alunos “distantes da escola”. 70% dos professores afirmaram ter “leccionado novos conteúdos” e 47,8% afirmaram que iriam avaliar os alunos. Só não disseram como avaliariam… Dois terços dos inquiridos afirmaram que o ensino à distância era mais exigente do que o trabalho presencial e que estavam cansados, exaustos e com “falta de apoio”, em particular, dos pais dos alunos. Os autores do relatório manifestavam preocupação pelo enorme esforço que teria de ser feito pelos professores,  “para recuperar, tanto quanto possível, as crianças e adolesce...

Ubatuba, 22 de março de 2045

Queridos netos, no tempo em que os vossos olhos se habituavam ao céu do sul da vossa infância, o vosso avô atravessava esse mesmo céu no ventre de um pássaro de metal, respondendo aos apelos de educadores sequiosos do fermento que faz levedar os sonhos. Nesse tempo, também as palavras voavam, mas no ciberespaço, nas asas que homens de engenho lhes deram. De modo que, cada vez que regressava do outro lado do oceano, já as ideias e sentimentos de muitos e maravilhosos educadores haviam chegado à minha caixinha do correio electrónico (correio electrónico era um utensílio que usávamos no tempo em que viestes ao mundo). Dou-vos ler pedacinhos de uma dessas mensagens: “ Caro Zé, eu continuo na minha pesquisa, juntei algumas coisas, servirão bastante para colocar "a pulga atrás das orelhas dos professores". Quem sabe eles não dão o famoso pulo do gato e reinventam formas de compreender o que está acontecendo com seus alunos? É impressionante como os dirigentes dessa educação brasile...

Maranduba, 21 de março de 2045

Atento à importância de que se revestia a seleção de manuais escolares e consciente da diversidade e da quantidade de critérios a considerar na sua análise, o professor embrenhou-se na leitura atenta dos manuais que as editoras, generosa e prodigamente, haviam feito chegar à sua escola. Numa espécie de viagem ao passado, sentiu-se transportado até aos anos cinquenta, criança de tenra idade, enfileirada com outras crianças, sentadas em velhas carteiras, dedo apontado para o “livro de leitura”, entoando em coro melopeias sem sentido, "A de águia, e de égua, i de igreja, o de ovos, u de uvas..." Concluída a análise dos “manuais aprovados” para o primeiro ano, extraiu algumas frases de elevado gabarito intelectual, que as suas criancinhas deveriam repetir até à exaustão. "A tia tapa o pote"  era a frase campeã das citações, quase a par com a célebre  "a vaca dá leite" . Sentiu-se regressado ao país rural da sua salazarista infância perante frases como:  "...