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Mostrando postagens de setembro, 2024

São José do Imbassaí, 30 de setembro de 2044

Estávamos em setembro de dois mil e vinte e quatro. Mais de dois anos tinham decorrido desde o encontro na casa que Niemeyer concebera para Darcy viver os últimos dias da sua vida e na Fazenda Itaocaia. Recordo-me de, no final da palestra ali realizada, a Adriana ter dito que, “já tendo em Maricá a Casa da Maysa, a da Beth Carvalho e a do Darcy Ribeiro, só faltava a do José Pacheco”. Não me deixei lisonjear, mas aceitei o desafio. Quando assumi ser cidadão maricaense, o convite foi reforçado pela secretaria de educação, através da formalização de um “termo de referência”, no qual me era solicitada a criação de uma rede de comunidades de aprendizagem. Adquiri um terreno e o entreguei à guarda de educadores que viriam a ser coautores da primeira das redes de comunidades.  Dificuldades várias provocaram um hiato de dois anos entre a assunção de um compromisso e o “Praticar Darcy”. Parecia que o poder público passava por uma crise de amnésia. Esquecera-se de que solicitara a realização...

Lindoia, 29 de setembro de 2044

Nos difíceis tempos, de que vos venho falando, m al grado os avanços que a lei consentia, a escola brasileira continuava imersa em contradições, dividida entre uma escola dos deserdados e uma escola de pseudo-elites.  Enquanto os herdeiros da plêiade educacional do Manifesto dos Pioneiros defendia que a educação deveria ser pensada a partir das comunidades, de modo que os processos de aprendizagem assumissem um papel transformador nas sociedades, ainda havia quem acreditasse que o modelo escolar instrucionista era único e que o prédio da escola era o único lugar onde se poderia aprender. Até que chegaram tempos novos. Encontrei educadores, que faziam das suas escolas instrumentos de emancipação, para que um povo educado não mais aceitasse “as condições de miséria e desemprego como as que temos”. Nestas palavras do Florestan estava contido o drama que a herança escravagista e colonialista perpetuava: a de manter a maioria da população culturalmente alienada e afastada das decisões p...

Alcoutim, 28 de setembro de 2044

Entregando os “estudos de caso” nas mãos competentes de juristas, aproveitamos este início de Primavera (o outono português) para questionar o modelo educacional instrucionista imposto às escolas nos idos de vinte. O vosso avô tinha quatro anos de idade, quando Einstein e Russel publicaram um manifesto:  “ Estamos falando nesta ocasião, não como membros desta ou daquela nação, continente ou credo, mas como seres humanos membros da espécie Homem, cuja existência contínua está em dúvida. Temos que aprender a pensar de uma nova maneira. Temos que aprender a nos perguntar”. Pensar de uma “nova maneira”! E “aprender a perguntar”! Os subscritores do manifesto de 1955 contestavam a utilização de armas de destruição em massa. Em 2024, seria abusivo considerar o “instrucionismo” como arma de destruição em massa?  Alguns amigos teóricos o criticavam, como fez o amigo Celso na sua “Crítica Epistemológica ao Instrucionismo”: “Epistemologicamente, o "Querer" implica eleição do ob...

Leiria, 27 de setembro de 2044

Eis mais uma sugestão de “estudo de caso”. Quando a Ana recebeu a infausta notícia, não queria acreditar. Dias antes, manifestara o seu regozijo pela celebração de um protocolo com o agrupamento de escolas e com a autarquia. A comunidade de aprendizagem surgia pujante e com reconhecimento das “autoridades”.  O regozijo dava lugar ao desencanto e à preocupação. As “autoridades” alegavam “não terem percebido” (manifestação de analfabetismo funcional?) o conteúdo do documento que, voluntariamente, tinham assinado, e, portanto, declinavam responsabilidades. Ao longo de décadas, eu aprendera a lidar com canalhas. Sosseguei a Ana. O projeto iria acontecer, nos termos do protocolo! Vezes sem conta, meus companheiros de profissão suscitaram este diálogo: “As escolas que você ajudou a criar não têm aula, nem turma…  Estão dentro da lei? É evidente que sim. Então, as escolas que têm aula estão fora da lei? Sim, estão. Por que diz isso? Porque, do modo como funcionam, negam o direito a e...

Monsanto, 26 de setembro de 2044

Trago-vos mais uma proposta de “estudo de caso”. No setembro de 2024, o Governo português andava às voltas com o problema da “falta de professores” – um falso problema, pois, em alguns agrupamentos de escolas, havia três ou quatro alunos para cada professor. E escolas com turmas de trinta alunos beneficiavam de uma ratio aluno-professor não superior a 12.  Falava-se de dar mais autonomia às escolas, mas apenas se falava, porque o Sistema continuava tão obsoleto e a sua administração tão autoritária, que nenhuma mudança seria de esperar. Dez anos antes, quando uma escola foi encerrada pelo Ministério de Educação, os pais dos alunos optaram pelo ensino doméstico. O agrupamento de escolas deu luz verde ao processo e as crianças foram acompanhadas por duas professoras. Porém, no primeiro dia de aulas do ano letivo seguinte, os pais foram informados de que o ministério não reconhecia a avaliação positiva aos alunos, atribuída pelas docentes. O ministério considerava ilegal a situação do...

Maricá, 25 de setembro de 2044

O prometido é devido, aqui vos trago uma primeira proposta de “estudo de caso”. Mais adiante, voltarei a falar-vos do primeiro protótipo de comunidade de aprendizagem. Vereis como os educadores autores desse estudo conseguiram ultrapassar obstáculos aparentemente intransponíveis. A Rúbia Lóssio evitou falar do maior dos obstáculos encontrados – a difícil sustentabilidade financeira do projeto – mas o descreveu de modo brilhante: “É chegar, construir e praticar! Venha! Não se acanhe, se avexe! Pois aqui é um lugar de renovação, de fazer crianças felizes, de mudança educacional, que evidencia valores na formação de uma consciência planetária.  Como diz o Amigo Zé, é uma oficina de almas, porque “uma escola de cidadãos não pode ser uma ilha”. Há de se considerar que a “CALMA” – a Comunidade de Aprendizagem da Lagoa de Maricá – é um laboratório de mudanças necessárias na Educação.  Como diz a escritora Clarice Lispector, tudo começa com um sim: quando uma célula disse sim a outra ...

Pedra do Macaco, 24 de setembro de 2044

Foram muitas as estórias contadas sobre um inexperiente professor que, em plena ditadura de Salazar, se deixou influenciar por um grupo considerado politicamente incorreto, que dava pelo nome de Movimento da Escola Moderna.   Com professores "marginais" aprendeu uma máxima que o iria acompanhar na sua trajetória de profissional do desenvolvimento humano: olha para o que és (ou pretendes ser como pessoa e professor), não olhes para o que outros fazem (ou não fazem, ou não são).  Ele leu tudo o que havia para ler (ou o deixavam ler), num tempo em que ninguém ouvira falar do Piaget. Se encantou com a leitura do Freinet do "texto livre", no original francês, que um exilado político lhe havia oferecido. Mas já começava a descrer da cartilha. Ele bem tentava imitar o Celestin e a Elise, mas os quarenta alunos, que havia herdado de um austero professor à moda antiga, não saíam dos canónicos "a vaca dá leite, ossos e carne", "a vaca é muito importante para a ...

Grande Flor de Pedra, 23 de setembro de 2044

Nos idos de vinte e quatro, o Sistema Educacional ainda permanecia estagnado na proto-história da Educação… e da Humanidade. Confirmava-se a premonição de Darcy: a crise da educação não era uma crise, era um projeto, que se prolongava sem cessar. Nesse ano, ofereci a educadores éticos um dos possíveis “caminhos das pedras”, para a saída da crise-projeto. Era, tão só, aquele que eu conhecia e que tão bons resultados obtivera – o da Escola da Ponte. Se outros caminhos houvesse, que se apresentassem! Não era um mero processo de Mudança Educacional, mas da produção da conceção e desenvolvimento de processos de Inovação, através da introdução. de práticas sociais integradoras e da utilização de modalidades formativas efetivamente transformadoras como o círculo, a oficina, a tertúlia…). As principais caraterísticas dessas modalidades – a praxeologia, o isomorfismo e a firmação do sujeito de aprendizagem – criaram condições de reelaboração da cultura pessoal e profissional dos educadores. Ope...

Barra do Garças, 22 de setembro de 2044

Há cerca de quarenta anos, uma pesquisa concluía que, até cerca dos cinco anos de idade, quase todas as crianças faziam perguntas de modo espontâneo: “Por que é que o céu é azul? De onde vêm os bebês? Tio Zé, por que é que o teu olho é diferente do meu?”   No final do ensino médio, apenas um por cento dos jovens ainda perguntava algo – doze anos de escutar respostas a perguntas que nunca fizeram assassinaram a curiosidade. Vou fazer noventa anos e continuo tão perguntador como quando nasci. Quase nonagenário, mantenho sem resposta silenciosas interrogações:  “Onde estou? Quem sou?” – E por aí vai… coisa de velho.  Perguntador inveterado, dirigi ao professor António uma indagação, ao que ele respondeu:   “É assim, porque sim!” E por aí se quedou a conversa. A minha desconfiança relativamente à eficácia e eficiência do trabalho em sala de aula começou bem cedo… e da pior forma. Há mais de oitenta anos, perguntei ao professor Vasconcelos por que razão eu tinha de aprend...

Recife, 21 de setembro de 2044

Neste dia de há vinte anos, saí da “Madre de Deus” convicto de que haveria quem reagisse positivamente ao meu convite à mudança. Era uma escola merecedora de admiração pelos valores visíveis numa prática feita de amorosidade e intuição pedagógica. Pessoas como a Christiana e a Rosângela me conferiam alento para resistir à tentação de desistir. Porque as notícias de jornal a isso me convidavam: “Adolescente que atacou colegas pesquisava sites nazis e mostrou competências intelectuais que causaram surpresa (sic). O rapaz de 12 anos esfaqueou 6 colegas, numa escola da Azambuja, com uma faca de cozinha e pode ir para um Centro Educativo.” O Sistema punia com a expulsão quem precisaria de compreensão e ajuda. A sociedade hesitava entre proibir o uso de celulares em sala de aula – demonizando o aparelho que, em tese, era responsável por desvios de “comportamento” (sic) – e o acesso indiscriminado à Internet. Mais uma vez, se produzia um falso dilema.Necessário seria ensinar a usar o celular/...