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Mostrando postagens de fevereiro, 2025

Terras-de-Entre-Ambos-os-Aves, 28 de fevereiro de 2045

Houve um tempo em que enviava cartas aos meus netos, nas quais lhes dava a conhecer a “espuma dos dias” de tempos sombrios (se ainda houver Instagram, podereis lê-las em jpacheco.1951). E, no fevereiro de há vinte anos, regressei às páginas de um jornal que ajudei a fundar e a que dei o nome de Entre-Margens, para nele publicar algumas dessas cartas, para retomar o comentário de velhos eventos narrados em amarrotados papéis, cd-rom, cassetes e outras eletrônicas bugigangas, guardadas no baú das velharias. Retirado o pó e as teias de aranha, aqui vos trago memórias de esquecidos fatos, pedindo que me seja perdoado escrever em “brasilês”, entre o vernáculo de dois países, resquícios de acordos ortográficos e restos de tupi-guarani. Num auspicioso final do fevereiro de há vinte anos, n o meio do cortejo de horrores em que a comunicação social se tinha transformado, eis que surge uma boa notícia: pelo  Despacho n.º 2362/2025, de 20 de fevereiro ,  o nosso conterrâneo Luís Henrique...

Minas Novas, 27 de fevereiro de 2045

Nos idos de vinte , foram realizados atos eleitorais, nos quais, os candidatos derrotados não reconheciam a derrota e acusavam o processo de corrupto. Talvez tivessem alguma razão... Nesse  tempo negacionista, eleitores depositavam confiança em políticos corruptos, elegiam políticos xenófobos e até fascistas, davam o seu voto a gente boçal. Num tenebroso tempo de moderna barbárie, a falácia, o embuste e a mentira alimentavam o discurso político. Cadê o exercício da cidadania? Os dicionários diziam ser a cidadania o exercício do “direito de cidade”. Dizia-se que o direito de cidadania se exercia quando se atingia a idade requerida para exercer direitos políticos estabelecidos na Constituição. Mas qual seria essa idade? Aquela que a lei outorgava aos que, já crescidos, contra ela atentavam? Por que não partir do princípio de que a cidadania se aprendia no exercício da cidadania? Conheci crianças que exerciam cidadania plena, em espaços de liberdade responsável. Também conheci adultos...

Passo Fundo, 26 de fevereiro de 2045

Netos queridos, nos idos de vinte e cinco, escrevi um livrinho com o título “Mudança e Inovação – Obstáculos e Possibilidades”. Nele descrevi um personagem sinistro do drama educacional: o “alguém”. Quem seria esse “alguém”? Um homem? Uma mulher? Um coletivo? Algum alienígena? O que se sabia é que se à-vontade, se movia nos labirintos de secretarias e ministérios, causando estragos. Dar-vos-ei três exemplos.  Mães e professoras se uniram num projeto inovador. Falaram com a coordenadora de área. Entusiasmada, a coordenadora entrou no grupo de WhatsApp das professoras e foi consultar a secretaria. Logo se desentusiasmou, porque “alguém” da secretaria a proibiu de apoiar o projeto. Obediente aos “alguéns superiores”. Saiu do grupo de WhatsApp e se silenciou. Um projeto de política pública da mesma secretaria de educação foi objeto da perfídia de outro “alguém”. Transcrevo excertos de uma ata: “ Alguém” da secretaria   retirou documentos do processo. Disse que, ou fazemos do jeito...

Samambaia, 25 de fevereiro de 2045

Ao longo de meio século, recebi milhares – não é exagero! – de mensagens como esta: Caro professor, estou num buraco negro. Tem sido um suplício, sofrimento por uma causa... Aqui, ninguém quer ver uma educação diferente. A Direção conseguiu ter terreno para fazer o que lhes adequava. Não tenho condições para defender o que quer que seja. Por lealdade e respeito pelo seu trabalho, retiro-me de um sonho incompleto (…) terminando, desejava contar com a sua ajuda para poder estar mais em paz.  Ao cabo de muitas ameaças de “superiores hierárquicos”, este professor desistia.      Uma hecatombe educacional acontecia.  A maioria dos estudantes estava abaixo do nível 2 em matemática, patamar que a OCDE estabelecia como necessário para que pudesse exercer plenamente sua cidadania. Muitos jovens em idade escolar não estavam matriculados, por alegada “falta de vaga”. No 3º ano do ensino fundamental, apenas metade dos alunos alcançava o aprendizado adequado em mate...

Santa Cruz do Sul, 24 de fevereiro de 2045

“A vida era igual aos grupos de camponeses que iam à missa aos domingos. A criança herdava naturalmente o conhecimento, as reflexões e o bom senso das gerações que caminhavam perto dela, tutelares [mas] as condições do meio mudaram radicalmente e as crianças só serão salvas utilizando métodos adaptados à dinâmica contemporânea.” Na obra de onde extraí estas linhas, Celestin Freinet descrevia, há cerca de um século, um processo educacional anterior à emergência da Primeira Revolução Industrial. Há cerca de vinte anos, deparei com personagens do drama educacional, que me “transportaram” ao tempo em que o eminente pedagogo escreveu essas palavras. Aqui vos deixo a descrição de um lamentável episódio. Da agenda da reunião constava a apresentação de uma proposta de protocolo de avaliação de projetos considerados inovadores. Uma senhora apresentada como “especialista em currículo” ordenou a uma subordinada que desse início à sessão e passou a conduzir os trabalhos, lendo o conteúdo de um pow...

Itaipu, 23 de fevereiro de 2045

Netos queridos, nesta cartinha, concluo a descrição de um lamentável episódio, para que os vindouros fiquem sabendo de acontecimentos de tempos sombrios. Perguntastes por que razão vos conto “estórias de antigamente” e eu vos digo que o “antigamente” não está tão longe quanto possa parecer. As casas da Comunidade eram da Comunidade. Só pessoas da comunidade e voluntários as poderiam utilizar. Foi isso que acordei com a “proprietária”. Qualquer “invasão” de alguma das casas seria considerada ilegal. Entreguei a minha biblioteca à guarda da Associação da Comunidade de Aprendizagem da Lagoa. Seria necessário exercer vigilância, para que ela não fosse devassada. Nas redes sociais, recebia mensagens como estas: “ Iniciaremos fundamentos de matemática, vamos usar a plataforma Khan. Descobri lendo um livro da nossa biblioteca…” Eu mantinha ajuda “científica” e as leituras fertilizavam as práticas: “Hoje foi incrível. Iniciamos projetos. Grupos de responsabilidade. Escolha de tutor. Pesquisa. ...

Imbassaí, 22 de fevereiro de 2045

Deixo-vos com mais alguns excertos de mensagens, que denotam o pulsar de uma comunidade, que gente má tentou destruir. Reitero aquilo que vos disse: comprei o terreno, para uma comunidade, não para mim. E, d ado que eu fizera “voto de pobreza” e não queria ser proprietário do que quer que fosse, pedi uma pessoa que fosse a “proprietária”. Com ela fiz um acordo: ficaria com metade, entregando a outra metade à guarda de uma comunidade. Durante algum tempo, lá morei, ajudando a criar condições de salubridade, contribuindo para alimentar crianças famintas de pão e de afeto. Depois, fiquei por perto e disponibilizei o meu espaço, para que voluntários o habitassem. Um topógrafo fez o estudo da divisão do terreno e apresentou uma proposta. A “proprietária” concordou com a proposta. O processo se completou com a criação de uma associação, que iria gerir o projeto. E eu sugeri que ela entregasse metade da propriedade à comunidade, ou que fizesse um “contrato de comodato” (direito de superfície)...

São José, 21 de fevereiro de 2045

Uma secretaria de educação me pediu para lançar as bases de uma rede de  comunidades de aprendizagem. Aceitei o convite e dei início ao último dos projetos da minha vida profissional. Em Portugal, juntei todo o dinheiro que tinha, comprei um espaço num município brasileiro e dei formação a educadores que, voluntariamente, se disponibilizaram para ali viver por um tempo. “Zé, como faço acordos de convivência com as crianças? Alguns acordos eles já entenderam como não correr em casa, a vez para falar, não gritar, mas agora preciso fazer acordos quando estão brincando ou jogando bola. E sobre bater. Fiz alguns acordos com eles e nenhum deles reclama. E ainda assim me amam tanto!” A dedicação de uma voluntária penetrava o tecido social. Um projeto e uma associação tomavam forma. “Zé, fiz amizade com uma rede de pais, são uns 10 pais. Estou fazendo um grupo no WhatsApp. Pensei em fazer uma festa junina para as crianças, cada um traz um prato, a decoração eu tenho tudo. E podemos fazer a...

Maricá, 20 de fevereiro de 2045

Esta cartinha será uma espécie de “aviso à navegação”, para quem navegar uma vida decente. A marítima metáfora serve na perfeição para caraterizar o que acontecia no mar alto da Educação. Na primeira metade de 2025, quem ainda navegasse contra uma corrente de ignomínia, contornando escolhos e icebergs, deveria ficar atento às consequências dos “tsunamis” causados por uma sub-humana espécie de tubarões pedagógicos. Cansado de assistir a naufrágios (leia-se: projetos) o vosso avô resolveu “mudar de vida”. Melhor dizendo, decidiu… viver. Gastara mais de meio século em vãs tentativas de humanização da Educação, fora uma espécie de Dom Quixote, “quebrando lanças contra um “moinho” chamado Sistema de Ensino. E o vosso avô Zé não iria criar mais uma “capelinha académica”. Não constituiria mais uma “seita pedagógica” com o respetivo dogma e guru, nem passaria qualquer legado ou herança. Eu apenas tinha feito o que deveria ser feito. A partir dali, passaria à condição de ajudante de quem enfren...

Caçapava do Sul, 19 de fevereiro de 2045

No interior gaúcho se implantou um dos projetos mais consistentes de quantos ajudei a criar: a Escola da Floresta. Fui ver como o amigo Bruno e a sua equipe testavam teoria construída ao longo de mais de meio século. E a formação experiencial observada na Escola da Floresta me mostrava que se deveria partir de práticas “disruptivas”, como as da Ponte, do Âncora, ou da Escola Aberta, para as instalar, as analisar criticamente e, prudentemente, inovar. Nesse projeto confirmei aquilo que começara a compreender no início deste século. Isto é: se o centro dos processos de aprendizagem não deveria ser o professor, também não seria o aluno – não havia centro, mas relação humana. As práticas instrucionistas eram obsoletas, mas as práticas neoliberais da Escola Nova não poderiam prescindir de contribuições do paradigma da instrução. Deveria haver um modo de integrar essas práticas com aquelas fundadas no paradigma da comunicação. E eis que surgiam... “divergências”. “Tem de cumprir a lei da sec...

Grande Flor de Pedra, 18 de fevereiro de 2045

O dia oito de fevereiro de há vinte anos marcou uma viragem definitiva no rumo do projeto das Redes de Comunidades de Aprendizagem. À semelhança do que acontecia nas reuniões da equipe da Escola da Ponte (começávamos sempre por ler um poema, escutar uma canção, partilhar “belezuras”), o encontro realizado no Museu Casa Darcy Ribeiro teve início com a recitação de um poema da autoria de… Darcy Ribeiro. “ Que é que fiz, não fiz, de mim? Que é que fiz na vida, da vida? Quem sou eu? Esse eu que me sou. Minhas mãos me pendem soltas. Inúteis para fazimentos. Só servem para escrever, acarinhar. Diante das flores me extasio. Tolo, só reconheço rosas, orquídeas, cravos. Quem sou eu, septuagenário, Que esgoto meu tempo de me ser aqui? Insciente, perplexo, inexplicado. Só cheio de saudades de mim. De tantos eus que fui. Sidos. Idos. Somos descartáveis, sei, mas dói.” A “dor” de Darcy na fase terminal de um câncer se plasmou em frases liminares por si ditas e escritas, quando a sua vida já se esva...