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Mostrando postagens de maio, 2025

Tondela, 31 de maio de 2045

Num facebook, li a notícia da realização de um seminário: “Desafios para uma educação de futuro” - um dos painéis tinha por designação: “Estratégias para salas de aula menos chatas”. Queridos netos, juro que era essa a designação do painel! Isto vos garanto por saberdes que, no tempo em que ainda se “dava aula”, elas não só eram chatas como prejudiciais. Uma geração de auleiros (talvez um neologismo criado pelo meu amigo Pedro Demo), ignorantes das ciências da educação, produzia e reproduzia males irreparáveis, em sala de aula – as escolas enfeitavam a falência do modelo instrucionista com frivolidades, inúteis paliativos e infantilizações metodológicas. Mas, por que disto vos falo, à distância de décadas? Porque, neste mês de maio de 2045, me preparo para uma breve viagem a Portugal e para, mais uma vez, visitar a Associação Agostinho da Silva, na companhia do meu amigo João. O Mestre Agostinho nos dizia que as instituições sempre se corrompem e acabam por ser inúteis. Nos i...

Vila Clara (São Paulo), 30 de maio de 2045

"Todos irmãos!” – Era assim que o saudoso Papa Francisco nos convidava, através de um singelo apelo, a assumir esse grande princípio dos Direitos Humanos: “Será possível aceitar o desafio de sonhar e pensar uma Humanidade diferente. É possível desejar um planeta que garanta terra, teto e trabalho para todos. Este é o verdadeiro caminho da paz e não a estratégia insensata e míope de semear o medo e a desconfiança perante ameaças externas" . Nesse outubro de 2020, urgia dar forma concreta às palavras do Francisco, porque nos chegavam notícias de uma barbárie generalizada. Na França, um professor foi decapitado em plena rua. No Rio, enquanto passeava tranquilamente numa rua de Copacabana, u m homem morreu, ao ser atingido na cabeça por uma bilha de gás arremessada a partir do 12.º andar de um prédio. Também no Rio, em apenas um dia, operações contra milícias mataram dezassete pessoas. Na Rússia, uma mãe colocou o seu bebê preso dentro de um armário, para que morresse de fome...

Tupanciretã, 29 de maio de 2045

De volta ao tema “avaliação”, escutemos o Mestre Lauro, que assim se manifestava acerca da pseudo-avaliação, que nesse tempo (e ainda nos idos de vinte) se fazia: “O atual processo de verificação de rendimento, se por um lado é instrumento precário e anticientífico de avaliação, por outro favorece a criação de perigosos hábitos e atitudes de desonestidade, fraude, de confiança no “fator sorte” e de memorização, desorganizando a vida intelectual do aluno e preparando-o para estender à vida de cidadão e de profissional os processos corrompidos aprendidos nos bancos escolares. Seria melhor que nada se verificasse a possibilitar a aprendizagem de atitudes desonestas ou deformadoras, como atualmente acontece nas escolas. As provas e exames dificilmente permitem verificar o comportamento do indivíduo numa “situação de vida”.   Não nos devemos basear em “conhecimentos atuais” apurados numa emergência (por exemplo, nos vestibulares). Exame de admissão é resquício de escola aristocrátic...

Itabira, 28 de maio de 2045

Ao longo de meio século de professor de chão de escola, raramente encontrei estudos que não partissem do pressuposto de que o tempo de aprender era o tempo passado em sala de aula. Exemplo típico desse equívoco foi a conclusão do estudo de um antropólogo, que demonstrava a necessidade de a sociedade compreender as peculiaridades da percepção e uso do tempo no ambiente escolar. Ele dizia ser muito importante que as “aulas” de matemática fossem administradas pela manhã. Supostamente, porque o aluno teria maior capacidade de “absorver” o conhecimento – se afirmações desse gênero provindas de “especialistas” não fossem graves, seriam ridículas. Um dos pontos fortes do debate dos idos de vinte era “o tempo de duração de uma aula”. No decurso de um congresso, alguém perguntou se eu estava de acordo com a carga horária em vigor. Respondi que “carga” era coisa de jegue, com o devido respeito pelo colega e pelos jegues. O colega voltou à carga. Perguntou-me se aprovava a alteração do temp...

São João da Ponte, 27 de maio de 2045

Entre o aparecimento da lousa de ardósia e o da lousa digital distam séculos. Nesse longo hiato, a escola, pouco, ou mesmo nada mudou. Apenas terá mudado o tipo de material utilizado na fabricação da lousa. No final do século XX, jovens internautas já comunicavam com outros, pediam e prestavam ajuda, em chats, emails, e múltiplas plataformas digitais. Nesse tempo, importava mais que fosse o aluno a esforçar-se, para descobrir e recriar realidades, do que uma “realidade” ser comunicada por um professor. E quantos jovens comunicavam com os professores, através da internet? Num tempo em que a prática da escrita da letra cursiva ia perdendo sentido, muitos docentes ainda obrigavam os seus alunos a um gasto significativo do tempo escolar no exercitar da letra cursiva, para que – segundo afirmavam – os seus alunos tivessem “uma caligrafia perfeita”. Talvez se inspirassem em Steve Jobs, que, quando passou pela universidade, apenas quis aprender… caligrafia. Nos jardins de infância, prec...

Congonhas, 26 de maio de 2045

Na década de noventa do século passado, integrei uma comissão do Conselho Nacional de Educação encarregada de emitir um Parecer sobre uma proposta de base curricular. O documento sublinhava a necessidade de instituir práticas coerentes com o discurso teórico do preâmbulo da proposta de lei. As recomendações foram ignoradas e a lei foi aprovada. Visava-se a melhoria da qualidade da educação, mas a educação de Portugal não melhorou. Vinte anos depois, acompanhei a elaboração da Base Nacional Curricular Comum brasileira. Nela se recorria ao discurso contemporâneo das ciências da educação – ela estava repleta de termos como: “habilidades, direitos de aprendizagem, educação integral, competências” – mas, em tempos de pós-verdade e de crise ética, a proposta de BNCC era um documento híbrido, sem lógica interna e revelava incoerência entre o preâmbulo e o texto restante. Estava o caminho aberto para que uma administração burocratizada, aliada a lideranças tóxicas anulassem iniciativas d...

Santo Ângelo, 25 de maio de 2045

Ao longo da minha já longa existência, assisti a muitas campanhas eleitorais imersas na costumeira mesmice: promessas já prometidas e abundantes disparates. Como este, proferido quando decorria, no Brasil, uma campanha eleitoral: “Rede estadual terá aprovação continuada em todas as séries”. Encarei a hipótese de se tratar de mais uma “fake new”. Não era. Era mesmo mais um disparate, portador de um novo conceito: “aprovação continuada”. A notícia dava conta de que “t odo aluno que tivesse feito atividades seria aprovado para a próxima série escolar em 2021”. A rede estadual de ensino “teria  progressão continuada  em todas as séries, para os estudantes que tivessem feito alguma atividade letiva” (sic). No ano seguinte, os estudantes seriam matriculados na série subsequente da que frequentavam, “em regime de progressão continuada”. Em campanhas anteriores, os candidatos sempre haviam execrado a dita “ progressão continuada”, confundindo-a com a maléfica “aprovação a...

São Borja, 24 de maio de 2045

Queridos netos, Em 2025, eu tentava ajudar amigos e companheiros de jornada a “matar o pai” (psicanaliticamente, é claro!). havia completado setenta e quatro primaveras e apenas desejava que me libertassem do fardo da militância. Urgia que outros educadores tomassem nas suas mãos a… “missão”. Para tal, ajudei a criar uma rede de projetos de uma nova e melhor educação. Se ntia ter chegado a hora de ir plantar árvores e olhar passarinhos. Sabemos que uma rede não tem centro e que, por isso, se expõe a inevitáveis "dinâmicas pessoais" e a manifestações de egos inflamados. Por isso, não foi fácil concretizar o meu voluntário afastamento. Tão logo anunciei esse propósito, recebi mensagens como esta: “Como mãe e educadora do século XXI, cheguei a este momento mais certa de que as minhas crenças e visões em "chão de escola" estão corretas, dada a realidade deste novo século. A minha aproximação a esta rede prendeu-se com o fato de me poder sentir mais "aconc...

Odemira, 23 de maio de 2045

  Numa universidade, cerca de quinhentos docentes foram demitidos, no primeiro semestre de 2020. A redução das horas de trabalho era um dos aspetos de um movimento do ensino superior privado, que um sindicalista classificou de “imoral, mas legal”. Professores ficavam a saber da sua demissão, quando mensagens de pop-up surgiam na tela do computador. Um docente acreditava vir a ser demitido como retaliação por ter protestado com coordenadores em grupos de WhatsApp e avisado alunos da disciplina:  “Os alunos ficaram três semanas sem minhas aulas e eles colocaram um professor de outra área, que não sabia o que fazer”.  O instrucionismo assumia a sua máxima expressão economicista e não tardou que robots adentrassem salas de aula, substituindo dadores de aula. E, segundo rezava a notícia, os alunos “adoraram”. Devido a uma “deficiência”, Freinet se libertou da sala de aula. Durante a Primeira Guerra Mundial, fora ferido nos pulmões. Compreendeu que os seus problemas respiratóri...

Carazinho, 22 de maio de 2045

Num ano que nunca existiu, a Microsoft apelava para que os países democráticos reagissem aos “ciberataques de agentes malignos", porque e mpresas que desenvolviam vacinas tinham sido alvos de ataques cibernéticos. Na Europa de um ano que nunca existiu, era decretado o r ecolher obrigatório, nos fins de semana. N a China, drones registravam efeitos de mudanças climáticas: geleiras derretiam a uma velocidade nunca vista. A Humanidade já habitava um tempo de sociedade em rede, mas permanecia cativa de raciocínios lineares. Até à Terceira Revolução Industrial, dispúnhamos de sequências lógicas. Depois, o simultâneo, a sobreposição. Na era da pós-verdade, as redes sociais operavam um sutil processo de desumanização. Pejadas de comentários abjetos, acentuavam uma evidente degradação moral e ética. Dispúnhamos de inúmeros instrumentos de comunicação e nunca tão solitários nos sentíamos. No Brasil, em apenas dez anos, o suicídio infantil e juvenil aumentara 40%. O suicídio já era ...

Pelotas, 21 de maio de 2045

Alice querida, pelos teus dois anos de idade, te lançaste na senda das descobertas do linguarejar. E eu, avô babado não me cansava de te espevitar. Espantava-me e divertia-me com as tuas generalizações. Encorajava-te, incitando-te ao diálogo, desafiava a tua criatividade com socráticas subtilezas: “A Alice é a netinha do vovô? Sabes quem é a netinha do vovô?” “Sabo!” Talvez por te reveres num outro lado de um freudiano espelho – eu sei lá! – o certo é que tu me retorquias numa lógica implacável e zurzidora de ortodoxias gramaticais. “O que é isto?” – te perguntava, apontando as mãozinhas do Marcos. “Ito é a mões do minino!” Compassivamente e incondicionalmente te escutando, identifiquei lógicas, criativas generalizações, aprendi a gramática do bom senso. E reaprendi com os teus sábios arabescos linguísticos muito daquilo que eu tive de desaprender quando, um dia, quis ser professor. Acudiram à memória episódios, que ouvi contar, quando ainda exercia a profissão. Parece q...