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Mostrando postagens de dezembro, 2025

Inoã, 14 de dezembro de 2045

Eu concordava plenamente com a proposta e os objetivos do projeto de educação integral e considerava a sua base teórica como quase-perfeita. Mas a sofisticação do discurso contratava com a miséria das práticas. Analisei mais de meia centena de práticas e nenhuma produzia “aprendizagens significativas e emancipatórias”. Apenas em algumas salas de aula encontrei um ou outro professor que tomava tímidas iniciativas de mudança. A promoção de “oportunidades educacionais, sociais, culturais, esportivas e de lazer” decorria, quase sempre em contra-turno, na linha de uma pedagogia compensatória, completamente divorciada das atividades letivas. A integração entre escola e comunidade era uma “miragem”. Apenas alguns professores, de modo isolado, atingiam esse desiderato. A gestão democrática estava ausente e a Meta 19 do Plano Nacional de Educação fora ostracizada.   No contexto de uma escola a quem era imposto um modelo de ensino obsoleto e corrupto não fazia sentido falar de “cidade ...

Barra de Maricá, 13 de dezembro de 2045

Perante a “evidência” da manutenção de indicadores de insucesso (como o baixo IDEB) talvez fosse pertinente pensar que um maior investimento no financiamento das escolas pudesse não constituir-se em indicador de boa qualidade da educação. Talvez o indicador efetivo pudesse ser o do custo aluno-ano comparado com o índice de desenvolvimento, a par do “enxugamento” de despesas desnecessárias – melhor dizendo: o custo aluno-ano-qualidade. Fora assumido o compromisso de instituir “educação integral” em todas as escolas. Porém, os responsáveis concebiam a “educação integral” como a oferta de atividades complementares, além das aulas regulares, confundindo “educação integral” com a mera adição de “atividades complementares” . Por sua vez, os professores confundiam-na com condições materiais: “ Um a parte das condições para a nossa escola tornar-se de educação integral já foi conquistada; tem uma boa estrutura física, número reduzido de alunos por sala de aula”. Essas representações co...

Jaconé, 12 de dezembro de 2045

(continuação da cartinha anterior) Como, ontem, vos disse, o primeiro dos círculos de aprendizagem surgiu na Morada das Águias e foi fruto de um Núcleo de Projeto, primorosamente coordenado pela minha amiga Malu e constituído por generosos e generosas educadoras: a Lourdes, a Denize, o Bruno, a Francis, a Ana, o Evaldo, o André, a Clarice, a Bea, a Patrícia – à distância de 20 anos, importa evocar os nomes de corajosos educadores e educadoras que, em sombrios tempos, ousaram colocar em ato o seu amor pelas crianças. Continuemos lendo a síntese do relatório elaborado entre os anos de 2022 e 2025. O quadro normativo da Secretaria tinha por referência o paradigma da instrução, carecia de revisão e adequação a necessidades sociais e escolares do século XXI. No período em que realizei a pesquisa, mostrou-se urgente rever o modelo de gestão das escolas, passando de uma tradição hierárquica e burocrática para decisões colegiadas, colaborativas, com a direção entregue à comunidade, em ...

Ataliba, 11 de dezembro de 2045

Reto o teor do relatório de que vos falei, alguns dias atrás. A quase totalidade dos professores desconhecia por completo o teor do projeto da sua escola, ou nunca o tinha lido.   Confundia-se projeto da escola com projetos de professores isolados, ou projetos “importados”, adaptados de projetos de outras escolas, comprados a empresas, adquiridos a sistemas de ensino. Relativamente ao quadro de professores, foi questionado se o perfil profissional se alinhava ao PP-P da escola. Havia escolas em processo de reformulação dos seus projetos, mas os encarregados da revisão do documento não souberam dizer quais os seus valores, princípios ou objetivos. Apenas uma professora deles manifestou conhecimento. Quando questionados sobre o custo aluno-ano da escola, verificou-se a inconsistência nas informações, por falta de dados. A pesquisa constatou que o conceito de comunidade era difuso, assim como a capacidade de a escola estabelecer ações efetivas com o seu entorno. Para os entrev...

Bagé 10 de dezembro de 2045

Deixarei convosco alguns documentos garimpados na casa velha, como a “pérola” que junto a esta cartinha, um desenho feito por um aluno, numa sala de aula da Idade Média – a imagem reflete o enfado de um aluno submetido à reclusão em sala de aula. Há vinte anos, poderíamos escrever sobre “aula chata da Idade Média”, mas seria algo redundante. No tempo em que ainda se “dava aula”, imperava uma “chatice” idêntica à da Idade Média. No baú das velharias achei uma cartinha escrita em 2025. Ela aludia a um seminário: “Desafios para uma educação de futuro”. Um dos painéis desse seminário tinha por designação: “Estratégias para salas de aula menos chatas” (sic). Juro que era essa a designação do painel! No tempo em que ainda se “dava aula” em sala de aula, a aula não só era chata como prejudicial. Uma geração de auleiros (neologismo criado pelo meu amigo Pedro Demo), ignorantes das ciências da educação, produzia e reproduzia males irreparáveis, em sala de aula – as escolas enfeitavam a falê...

Sol Nascente, 9 de dezembro de 2045

O relatório de que vos tenho falado foi encontrado no baú das velharias, numa das minhas viagens a Maricá. A síntese, que vos tenho dado a conhecer, continha uma epígrafe da autoria do amigo Luckesi: “Importante é interromper a matança de crianças (nas escolas) e evitar a exterminação no embrião de milhões de gênios.” Nos relatórios que, anteriormente, eu enviara para o IBICT, para secretarias de educação, para ministérios e quejandos descrevi atividades a serem realizadas com vista à testagem e confirmação de indicadores, acompanhadas de um Projeto de Formação, de um Plano de Inovação e uma proposta de cronograma. Até que, chegados a 2025, a pedido do Ministério da Educação, enviei a mesma documentação para pessoas em que eu ainda acreditava – nesse tempo, ainda havia gente séria nos órgãos de decisão – uma proposta de aperfeiçoamento do projeto de Educação Integral. Acrescentava que a proposta de continuidade e validação dos dados obtidos no processo de pesquisa carecia de um...

Pelourinho, 8 de dezembro de 2045

Eis-nos no dia da Senhora da Conceição. Recordo bons tempos em que eu ensaiava o coro da igreja da Senhora da Conceição – já nessa altura, pedia a interseção da Virgem para a proteção das crianças vítimas de um genocídio educacional: Que Nossa Senhora nos valha! No alto do Morro da Conceição, no norte de  Recife , vê-se de longe a imagem de uma santa, com um manto azul e branco e o olhar voltado para os fiéis, Nossa Senhora reúne devotos ao longo de todo o ano, especialmente em dezembro, quando acontece uma festa centenária que, no ano da graça de 2025, teve a participação de cerca de dois milhões e meio de devotos. A padroeira de Recife era a Nossa Senhora do Carmo, mas a "Dona Ceiça", apelido carinhoso dado à Senhora da Conceição pelos recifenses, era considerada a "padroeira do coração". No dia anterior à Festa da Padroeira muitos milhares de manifestantes realizaram atos no Recife e em outras cidades, para protestar contra o aumento dos casos de feminicídi...

Sobral, 6 de dezembro de 2025

Com o avanço da tecnologia comunicacional, a dimensão do espaço físico não impede a conexão com o mundo. Pensando globalmente e agindo localmente, aproximávamo-nos do conceito e da prática de “comunidade de aprendizagem”. A produção acadêmica, que toma por objeto a comunidade de aprendizagem , consagra o princípio do diálogo igualitário . Esse princípio estabelece que, nos espaços de tomadas de decisão, a comunicação deverá basear-se na força dos argumentos e não em posições de poder. Mas, será possível conciliar o “diálogo igualitário” com a manutenção de uma gestão de escola hierárquica? Quando se assume que, em comunidade de aprendizagem, se busca trabalhar a gestão da escola em uma perspectiva democrática, participativa e dialógica, por que não se substituí os órgãos de gestão unipessoais por colegiados? A gestão escolar não poderá ser democrática, através da introdução de um órgão de gestão paralelo aos órgãos de gestão tradicionais, ignorando que os diretores estão sujeitos...

Praia do Forte, 5 de dezembro de 2045

Chegados ao longínquo mês de dezembro de 2025, seria tempo de “pôr os pontos nos is”, isto é, de aplicar aos projetos de educação inclusiva ou de educação integral (como nessa altura era a “coqueluche” dos teoricistas) uma lista de verificação. Foi isso mesmo o que eu fiz. Deitei mãos à obra, apliquei essa lista de parâmetros e critérios bem definidos a 74 escolas, a um estado e a um município. Eu conhecia bem o chão de escola, acompanhava centenas de projetos e não foi difícil encontrar aquelas que se reclamavam de integrar projetos ministeriais nas áreas acima referidas. Ainda nesta semana, vos darei a conhecer o teor dos relatórios que redigi – um para um organismo de pesquisa, outro para um órgão de poder local. Estava saturado de assistir ao faz-de-conta da “inovação” na mesmice, que surgia fantasiado de “cultura maker”, “IA”, “ensino híbrido”, aula invertida” e quejandos. Quando observava as “práticas híbridas” ou “invertidas”, eu temia pelas consequências e rezava para que D...

Vila Sônia, 4 de dezembro de 2045

E assim nasceu o primeiro dos protótipos de comunidade de aprendizagem. Outros se seguiriam, provando a possibilidade de haver Escola Pública. Retomei a leitura do belo livro publicado pela minha amiga Edilene, em 2025:   Foi injusto. Foi desumano. Em alguns momentos, até imoral. Com os educadores. Com as crianças. Com todos que acreditaram e deram tudo de si para manter vivo um projeto que inspirava o Brasil e o mundo. Sugaram a alma do que o Âncora representava e, depois, tentaram apagar seu legado. Histórias inacreditáveis precisariam ser contadas para justificar o injustificável. Talvez um dia eu tenha coragem — e serenidade — para narrar em detalhes tudo o que vi, ouvi e acompanhei, mesmo já estando mergulhada na construção da Escola Aberta. O fim do Âncora como escola foi, para mim, o fim do mais promissor projeto de educação inovadora do Brasil. Mas, ao mesmo tempo, sua essência, seu espírito de reinvenção, não morreu. Ele continua, transformado, resistindo em outras for...

Cotia, 3 de dezembro de 2025

Nas cartinhas de outubro e de novembro, publiquei documentos fundadores de projetos com potencial inovador, juntando-lhes uma espécie de “lista de verificação”, componente de um processo formativo que, no decurso de dezembro, será testado. Em 2026, criaremos protótipos de mudança educacional, locus de “residência pedagógica”. Irei propor à minha amiga Edilene que a Escola Aberta de São Paulo venha a constituir-se como o primeiro dos protótipos. Outros se lhe seguirão. Em breve, a minha amiga irá publicar um excelente livro. Li-o, atentamente. É o primeiro “tratado de educação” que li, desde que tive acesso às obras do Mestre Lauro – uma escrita isenta de teoricismo e reveladora de um saber-fazer incomum. No novo livro, a minha amiga faz o luto da Escola do Projeto Âncora: “Meses depois de deixar o Projeto Âncora, em novembro de 2018, para iniciar um novo ciclo com a Escola Aberta de São Paulo, vivi um dos momentos mais difíceis da minha trajetória na educação. Foi doloroso, pro...

Sal, 2 de dezembro de 2045

Conversando com a Alma, senti saudades de Cabo Verde. Por lá andei, no início dos anos 70, no embalo das “ mornas” , no sabor da  cachupa , em casas sem reboco – a pobreza digna de um povo sempre à espera da chuva me fizeram   escutar a Cesária e o Ildo Lobo. Na Ilha do Sal, lado a lado com empreendimentos turísticos, homens trabalhavam 12 horas diárias sob um sol forte. O sal corroía-lhes as entranhas e a esperança de vida era de menos de 30 anos. O Milton os celebrou: “Trabalhando o sal / Pra ver a mulher se vestir / E ao chegar em casa / Encontrar a família a sorrir / Filho vir da escola / Problema maior de estudar / Que é pra não ter meu trabalho / E vida de gente levar”. Em 1971, na “ hora di bai” , as saudades do que era uma “ província ultramarina”  gravaram marcas indeléveis e apelativas de um regresso. Lá voltei, nos anos 90, regresso amargo a lugares que guardava na memória, memórias desfeitas num regresso desencantado. De passagem pelo Tc...

Imbuí, 1 de dezembro de 2045

O primeiro dia dezembro é feriado nacional em Portugal, assinalando a Restauração da Independência operada em 1640. A data nos recorda que direitos e liberdades nunca são garantidos de forma permanente — exigem vigilância e participação. Outra data e feriado importante é o 10 de junho. Há alguns anos, nesse dia se realizou um colóquio subordinado ao tema “Problemas da educação em Portugal” (sic) e o mote do evento era bem sugestivo: “O que pediria Camões às ninfas para a escola pública? Se Camões ainda fosse vivo, o que pediria às ninfas do Tejo, no momento de escrita da sua obra panegírica, para a escola pública portuguesa”? Creio que o vate pediria aos professores que não levassem os seus alunos a odiar “Os Lusíadas” e que os promotores do tal colóquio se apercebessem de que agiam “num engano de alma ledo e cego, que afortuna não deixa durar muito” – ou, como diriam os brasileiros: que não agissem “ como cegos no meio de um tiroteio”. O m ovimento chamado “ Missão Escola Pú...